A Função 'Social' da Propriedade


Diploma Thesis, 2000

137 Pages, Grade: 9 von 10


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SUMÁRIO

Capítulo I – INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação e justificativa do tema
1.2. Metodologia
1.3. Divisão da matéria

Capítulo II - DA ORIGEM E DOS FUNDAMENTOS DA PROPRIEDADE
2.1. Da origem da propriedade privada
2.1.1. Teoria de Fustel de Coulanges
2.1.2. Teoria de Friedrich Engels
2.2. Dos fundamentos do direito à propriedade privada
2.2.1. Teoria da ocupação ou do primeiro ocupante
2.2.2. Teoria da posse
2.2.3. Teoria do consentimento universal
2.2.4. Teoria do trabalho
2.2.5. Teoria da prescrição ou da usucapião
2.2.6. Teoria do direito natural
2.2.7. Teoria da lei
2.2.8. Teoria da liberdade

Capítulo III - DO CONCEITO JURÍDICO DE PROPRIEDADE
3.1. Evolução do conceito
3.2. Tipificação e caracterização
3.3. Breves considerações acerca da posse

Capítulo IV – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
4.1. Gênese do conceito
4.2. A função social da propriedade no Brasil
4.2.1. Nas diversas Constituições
4.2.2. Na Constituição Federal de
4.2.3. Lei n. 4.504/64 - Estatuto da Terra
4.2.4. Lei n. 8.629/
4.3. A função social da propriedade em outros países

Capítulo V – DA PROPRIEDADE PRIVADA DOS MEIOS DE PRODUÇÃO
5.1. Conceito econômico
5.2. A propriedade privada dos meios de produção como geradora de desigualdade

Capítulo VI – DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
6.1. A desigualdade social e a pobreza como contrárias aos fins últimos da Constituição
6.2. O papel da função social da propriedade

Capítulo VII – CONCLUSÕES
Bibliografia

Anexo – O MST e o massacre de Eldorado de Carajás

Capítulo I - INTRODUÇÃO -

1.1. Apresentação e justificativa do tema

No quadro geral deste trabalho, será abordado um instituto do Direito de relevo social: a propriedade. O tema em apreço, qual seja A FUNÇÃO “SOCIAL” DA PROPRIEDADE, encontra-se na ordem do dia no cenário brasileiro.

A desigualdade social, facilmente detectada na nossa sociedade, gera os mais variados conflitos, dentre eles o que se passa em torno da terra. Esses conflitos, que remontam o início da colonização do Brasil pelos portugueses, ganharam maior relevo no final do século passado e no começo deste século, com os massacres impiedosos que o Exército brasileiro impôs aos camponeses em Canudos (Bahia, 1897) e no Contestado (Santa Catarina, 1912/1916)[1], somente para citar alguns exemplos.

O Brasil é um país continental, tendo 8.511.965 km2 de extensão. Em relação à propriedade rural, a maior parte do território se encontra em mãos de poucos proprietários de terra, formando os grandes latifúndios. Não é de hoje que se discute a necessidade de uma reforma agrária no país, entretanto, ainda assim as propriedades com mais de 1.000 hectares representam quase 44% de toda a área em que há estabelecimentos agrícolas no país. A Tabela 1 abaixo demonstra esse quadro:

Tabela 1 - Estabelecimentos agrícolas no Brasil

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Fonte: Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, A economia brasileira em gráficos, 1996, p. 54.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) é hoje a grande expressão desses conflitos.[2] Trata-se de uma organização político-social criteriosa, com objetivos próprios, que contrastam com os interesses dos proprietários de terra e do Estado. Um dos objetivos deste movimento é a reforma agrária, o que significaria uma redistribuição das terras, no intuito de reduzir a sua concentração neste país. Ocupando fazendas (geralmente armando barracas à beira da estrada, ou próximo a elas) eles pressionam o Governo a desapropriar.[3] O argumento usado para justificar as ocupações, entre outros, é o de que a terra ocupada não estaria cumprindo a função social, conforme preceitua a Constituição Federal.

Torna-se clara a importância do tema, ainda pouco tratado de maneira reflexiva em nossa cultura jurídica. Os trabalhos apresentados para a sociedade exploram sempre, e apenas, o aspecto dogmático da questão, explorando pouco os fatores sociais que cercam o tema e refletem a materialidade de suas causas.

Além do problema da concentração de terras, tem-se que a maioria delas é improdutiva. Os donos de terra, ainda assim, querem garantir o seu suposto direito absoluto à propriedade, ferindo, assim, o princípio constitucional de que toda propriedade deverá atender a sua função social. Parece mais adequado o raciocínio dos trabalhadores rurais sem-terra no sentido de considerar “…iníquo, injusto, o que é legal, que é a possibilidade de alguém possuir mais terra do que pode trabalhar, de açambarcar, cercar um território, não utilizá-lo nem deixar que outros utilizem…”[4] Resta patente apenas o viés especulativo da terra, em lugar de sua importância como instrumento a ser utilizado pelos trabalhadores como meio de matar a sua fome. Ora, como ficam os objetivos de erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais colimados pela nossa Carta Magna? Senão, veja-se a tabela:

Tabela 2 – Terras improdutivas em latifúndios (mais de 1.000 ha)

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Fonte: Cadastro do instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), 1996.

Note-se que o total da área improdutiva em latifúndios equivale à soma dos territórios da França, Alemanha, Espanha, Suíça e Áustria.

Como parece já ter sido esclarecido, pretende-se aqui um estudo crítico acerca do princípio da função social da propriedade, analisando a propriedade desde a sua origem, e, essencialmente, sob a égide do sistema constitucional brasileiro. Pretende-se, ainda, estudar o instituto do direito de propriedade, que exerce uma função social, contrapondo-o com um dos objetivos fundamentais da Carta Política.

Sendo propriedade um termo equívoco, imprescindível se faz a elucidação sobre qual acepção aqui será estudada. Excluindo propriedade enquanto faculdade ou qualidade (característica de algo), tem-se, ao longo deste trabalho, propriedade enquanto um bem imóvel e enquanto direito (domínio reconhecido de alguém sobre alguma coisa). A análise é feita, principalmente, tendo por norte a propriedade da terra, mas, em verdade, abrange toda propriedade dos meios de produção, que no sistema econômico brasileiro é privada.

1.2. Metodologia

Buscar-se-á a explicação para a evolução do princípio da função social da propriedade e dos fatos relevantes em torno do tema, por fatores materiais (históricos), levando-se em conta as leis da dialética.

Uma abordagem materialista consiste “no reconhecimento da primazia do papel determinante do ser social dos homens em relação à sua consciência e vontade”.[5]

Seguindo tal corte epistemológico, o método dialético é o único capaz de dar uma visão mais profunda e verdadeira acerca a realidade dos fatos sociais e as conseqüentes transformações no mundo jurídico. Isso porque sendo a lógica dialética dinâmica por si mesma, permite que se consiga estudar um assunto complexo, como o princípio da função social da propriedade, surgimento e implicações na vida social, relevando as contradições, pondo, aliás, o próprio princípio em contradição, na tentativa de superá-lo.

A perspectiva sob a qual o Direito é analisado nesta monografia tem dois pressupostos fundamentais: o Direito como superestrutura da sociedade, posto que “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”,[6] e a sociedade como estando em constante movimento.

1.3. Divisão da matéria

O trabalho foi dividido em 7 (sete) capítulos: I – Introdução; II - Da Origem e dos Fundamentos da Propriedade; III – Do Conceito Jurídico de Propriedade; IV – Da Função Social da Propriedade; V – Da Propriedade Privada dos Meios de Produção; VI – Da Interpretação Constitucional; e, VII – Conclusões, além de um anexo com informações sobre o MST e Eldorado de Carajás (onde integrantes do MST foram massacrados pela Polícia Militar local).

No capítulo II, tentou-se elucidar o surgimento da propriedade privada, bem como as diversas fundamentações ao direito de propriedade.

No capítulo III, faz-se uma síntese do desenvolvimento do direito de propriedade. Além disso, estão trabalhados alguns conceitos e características deste instituto.

Adiante, no capítulo IV, segue-se uma análise histórica do surgimento do conceito de função social da propriedade. Buscou-se fazer uma teleologia da introdução deste princípio na nossa Carta Magna. Trata também esse Capítulo da lei que caracteriza a função social da propriedade e do próprio Estatuto da Terra. Por fim, há uma breve exposição do princípio nas constituições estrangeiras.

Para a posterior interpretação constitucional de princípios e objetivos constitucionais contrapostos surge a necessidade de se tratar, no Capítulo V, da propriedade economicamente considerada, demonstrando o funcionamento estrutural do sistema econômico capitalista e suas conseqüências.

Toda a exposição ao longo desta pesquisa vai desaguar na contraposição do instituto da propriedade, cumpridor de uma função social, e um dos objetivos fundamentais prescritos na Carta Política de 1988, no seu art. 3o, III, qual seja o da ‘erradicação da pobreza e marginalização e diminuição das desigualdades sociais e regionais’. O capítulo VI tratará desta contraposição e avaliando o verdadeiro papel que cumpre o princípio da função social da propriedade para o Direito e para a vida em sociedade.

A leitura corrente que se faz do princípio da função social da propriedade é de que apesar dele ter retirado o absolutismo que condensava este instituto, ainda se trata este princípio de norma programática, tendo eficácia contida. “O fato é que – explica Dallari –, em termos de aplicação do Direito, salvo raríssimas exceções, o princípio da função social da propriedade não tem sido respeitado”.[7] Não obstante o atual discurso pela implementação fática do princípio da função social da propriedade (para que o direito à propriedade possa ser preservado). Questiona-se, dessa feita, a possibilidade da propriedade privada dos meios de produção, ainda que exercendo uma função social, ser incompatível com o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, qual seja o da erradicação da pobreza e marginalização e diminuição das desigualdades sociais e regionais.

Capítulo II - DA ORIGEM E DOS FUNDAMENTOS DA PROPRIEDADE -

2.1. Da origem da propriedade privada

“Estando assim povoado o mundo, seus primeiros tempos constituíram uma era de inocência e ventura, chamada a Idade de Ouro. Reinavam a verdade e a justiça, embora não impostas pela lei, e não havia juízes para ameaçar ou punir. As florestas ainda não tinham sido despojadas de suas árvores para fornecer madeira aos navios, nem os homens haviam construído fortificações em torno de suas cidades. Espadas, lanças, elmos eram objetos desconhecidos. A terra produzia tudo necessário para o homem, sem que este se desse ao trabalho de lavrar ou colher. Vicejava uma primavera perpétua, as flores cresciam sem sementes, as torrentes dos rios eram de leite e de vinho, o mel dourado escorria dos carvalhos”.[8]

Esta é uma retratação da famosa Idade de Ouro da mitologia, época em que a felicidade reinava na terra. Apesar dessa compreensão ingênua, alusivamente metafórica e, portanto, logicamente, mítica dos primórdios da existência humana na terra, nem sempre a vida humana neste planeta foi marcada pela exploração do homem pelo homem. Importante é que, além de poesia e mito, explicações científicas demonstram isso.

A história do Homem na terra (Homem, aqui considerado enquanto gênero humano) tem pelo menos 70 milhões de anos de desenvolvimento. Tomando o homo sapiens sapiens como referencial de ancestral do homem moderno, tem-se o seu surgimento por volta de 40.000 anos a.C.[9], na era do paleolítico superior, época denominada pelos historiadores como pré-história da humanidade. Interessante notar como a história da humanidade, da forma como é tratada pela maior parte da academia, só começa com as sociedades escravocratas (a exemplo da civilização egípcia), mas nem sempre foi assim (essa civilização surgiu bem mais tarde, por volta de 6.000 a.C.).

Considerando a apropriação dos meios de produção como o meio essencial pelo qual o ser humano pode explorar a sua própria raça - abordagem do Capítulo V - necessário se faz o estudo da origem da propriedade privada e como se vai fundamentar, então, o direito a esta propriedade. Posteriormente, a introdução do princípio da função social da propriedade em diversos ordenamentos jurídicos tentaria “humanizá-la”.

Existem algumas teorias acerca da origem da propriedade privada. Aqui serão feitas breves considerações com relação à origem da propriedade.

2.1.1. Teoria de Fustel de Coulanges

A origem da propriedade privada para este autor tem ligação direta com a origem da religião. As primeiras codificações acerca do direito de propriedade estavam nos livros sagrados, a exemplo dos persas, dos hindus, dos hebreus, dos gregos, dos romanos, etc.[10]

Os túmulos dos familiares eram sagrados, sendo vetada a entrada de estranhos nesta área, que pertencia à família. Como uma família se estabelecia num local durante algum tempo, estabelecia-se entre ela e o solo uma relação mais profunda e duradoura.

Coulanges, porém, inverte a ordem dos acontecimentos. Não foi o fato de haver codificação em torno da propriedade que fez com que esta se originasse, e sim a origem desta e a sua necessidade de proteção que fez com que a religião se preocupasse em tutelá-la. Além disso, ele parece ignorar que praticamente todos os povos “pré-históricos” eram nômades, não se estabelecendo permanentemente num só local, principalmente devido ao clima.

2.2.1. Teoria de Friedrich Engels

Já para Engels, no seu livro ‘A origem da família, da propriedade privada e do Estado’, os povos primitivos (ou como querem os historiadores: os povos “pré-históricos”) estavam organizados no que se convencionou chamar de gens (grupo de pessoas de uma mesma família)[12], que formavam uma comunidade comunista primitiva. Baseava-se a economia doméstica da gens no cultivo comum da terra, que pertencia à comunidade em geral, não tendo sido, ainda, apropriada individualmente; é a fase da apropriação conjunta e social dos meios de produção.[11]

Na gens, cada um possuía os utensílios necessários para a realização do seu trabalho, eram responsáveis por fazer ou buscar esses utensílios e utilizá-los para trabalhar. Já se pode observar aqui o primeiro tipo de propriedade privada, os bens móveis. Como exatamente surgiu a propriedade privada dos bens móveis (a exemplo dos rebanhos) não é muito claro na sua teoria. O produto do trabalho, no entanto, era coletivo, posto que as casas, hortas, canoas eram de propriedade comum, dividida pelas famílias das gens.

Aqui se abre uma discussão sobre se neste período pode-se falar em propriedade ou apenas em posse. Para Rodrigo Batista Martins, a propriedade pressupõe a existência da lei, enquanto a posse baseia-se numa situação de fato.[13] No entanto, esta divisão é meramente jurídica, se se considerar ‘propriedade privada’ como a ‘apropriação de algum bem como seu’ a discussão se torna inócua. É nítida aqui a confusão entre a origem da propriedade privada e a origem do direito à propriedade.

Depois de se apropriar dos bens móveis que serviam como meios para a realização do seu trabalho, o homem passou a utilizar-se de um tipo de propriedade bastante incomum. Com o desenvolvimento das forças produtivas na fase primitiva, quando o homem passou a criar gado, utilizar o metal e a trabalhar o tecido, tendo já se estabelecido numa região, ele se tornou mais apto a produzir bens além do necessário para a sua manutenção. Houve, então, a necessidade de mais pessoas para trabalhar, dessa forma, passou-se a utilizar prisioneiros de guerra como escravos (o “gado humano”, como denomina Engels).

Com o desenvolvimento da agricultura, num estágio já mais avançado das forças produtivas, em que houve uma mudança fundamental do caráter dos instrumentos de trabalho, fazia-se necessário assegurar ao lavrador o produto do seu trabalho, a colheita. Porém, para que os bens produzidos estivessem a salvo da apropriação de outras pessoas, tornou-se necessária a apropriação da própria terra, que era o meio de produção da riqueza principal à época, os gêneros alimentícios. Paulatinamente a terra se tornava uma riqueza para quem a possuía.

Já na Idade Antiga, tem-se nas diversas civilizações que existiram o exemplo de como a propriedade da terra - principal meio de produção à época - se tornou importante fonte de riqueza.

Na Grécia Antiga, a ganância pela propriedade da terra era tanta que foi necessário fixar uma extensão máxima de terra que um mesmo indivíduo pudesse possuir. Na época de Sólon os cidadãos foram divididos em quatro classes, tudo de acordo com a propriedade territorial e a produção desta. Também foi estabelecido um rendimento mínimo de produtividade da terra (coeficiente precursor da função social da propriedade). Observa-se, ainda, que os direitos políticos estavam divididos de forma que a classe que tinha mais terra tinha também mais poder e direitos.

Na República romana ocorreram várias lutas entre patrícios e plebeus, sendo um dos motivos a distribuição de terras do Estado. Mais tarde a nobreza patrícia se transforma na nova classe dos grandes proprietários de riquezas em dinheiro (moeda) e em terras, que absorveu paulatinamente a maior parte de toda a propriedade rural dos camponeses.

Os latifúndios formados por esta nova classe acabaram por despovoar a Itália (os campos eram cultivados por escravos) e abriu-se a possibilidade para o domínio dos bárbaros, posterior à formação do Império. Com a queda Império Romano no ocidente, foi ainda mais fácil para os bárbaros conquistarem as terras. Como o empobrecimento geral diminuiu o mercado, entram em decadência o comércio, os ofícios manuais e a arte. Tudo isso vai influenciar na divisão dos latifúndios em terras menores, que passam a ser de uso comum.

As guerras e a pobreza generalizada deste período levaram muitos homens livres a perderem suas terras e a se verem obrigados a procurar abrigo e meio de subsistência em terras de outros, que as arrendavam. Eles trabalhavam e estavam sujeitos à terra, podendo ser vendidos com ela. Este tipo de relação foi o germe do feudalismo, que se estabelecia sobre novo tipo de relação social de produção.

Pode-se observar que quando a propriedade passou a ser privada e se tornou um modo pelo qual o cidadão adquiria mais e mais direitos políticos, a gens foi perdendo importância, desaparecendo, e o Estado[14] ganhando sua forma. As pessoas passaram não a fazer parte de uma grande família formada por laços de parentesco; de consangüinidade; um tronco familiar (geschlechtsstamm); ao contrário, passaram a ser o apêndice de uma região. A ligação era agora não com uma família, mas com o lugar em que nasceram (ortsstamm).

Posteriormente, com a revolução industrial, surge mais um tipo de propriedade privada, a propriedade capitalista. O ser humano se apropria da maneira mais sutil e perversa do trabalho de outro, justamente pela qualidade de ser o capitalista o proprietário dos meios de produção, enquanto é o trabalhador apenas proprietário da sua força de trabalho.

Para dar sustentação à estrutura econômica baseada na propriedade privada surge o Estado, a ligação que faltava para que a sociedade organizada pela gens, com tradições comunistas, fosse transformada numa sociedade de valorização da riqueza em primeiro plano. Hoje, o Estado continua o grande responsável pela manutenção da propriedade privada, e, conseqüentemente, da exploração do homem pelo homem.

2.2. Dos fundamentos do direito à propriedade privada

Como alicerce à propriedade privada eram necessários mais do que os costumes, as circunstâncias históricas da produção, a força física, ou até mesmo a codificação já realizada por algumas religiões; eram necessários o Direito e a sua coercitividade inerente, com o suporte dado pelo Estado, de modo a garantir a propriedade.

2.2.1. Teoria da ocupação ou do primeiro ocupante

Consiste esta teoria de fundamentação do direito de propriedade na ocupação de território que ainda não haja sido ocupado (res nullius) ou na ocupação de território abandonado por ocupante anterior (res derelictae), sendo estas as formas pacíficas. A propriedade seria resultante de ocupação atual, física e efetiva do território. Há, no entanto, a conquista de território já ocupado, o que pressupõe o uso da força (isso já seria uma quebra do próprio direito de propriedade com fundamentação na ocupação, haja vista que o direito dos primeiros “ocupantes-proprietários” estaria sendo violado).

No direito romano, Cícero nos legou a metáfora do teatro para refutar a ocupação como fundamento do direito à propriedade: “o teatro, diz Cícero, é comum a todos; e no entanto diz-se que o lugar que cada um ocupa é seu; isso quer dizer que se trata de um lugar possuído, não de um lugar apropriado”.[15] Para Cícero, a ocupação seria mera tolerância e geraria direito à posse e não à propriedade.

Ademais, Proudhon parece acertar ao concluir que a teoria da ocupação se esvai no ar quando se contrapõe à igualdade entre os homens, ele diz: “Se os primeiros ocupantes ocuparem tudo, o que os retardatários ocuparão?”[16] Será que somente algumas pessoas teriam o direito à propriedade pelo fato de terem nascido antes? Crer nisso seria destruir a própria igualdade, que se supõe deva reinar entre os homens.

Ainda se se considerar que a igualdade não seja necessariamente visada pelo homem, estando em segundo plano frente ao direito de propriedade, tem-se, já consolidado no Direito, que um fato não pode gerar um direito, logo, a ocupação (fato) não pode fundamentar o direito à propriedade. Por último, se ainda assim se quiser fundamentar a propriedade na ocupação, deve-se lembrar que as comunidades primitivas foram as primeiras ocupantes, devendo então o direito à propriedade ser de toda a comunidade.

2.2.2. Teoria da posse

Essa teoria tem semelhança com a anterior (teoria da ocupação), sendo que é mais completa, pois diz respeito aos bens móveis e aos imóveis.

Praticamente os mesmos argumentos utilizados para refutar a teoria da ocupação servem para refutar a teoria da posse. Esta, sendo situação de fato, ou seja, alguém está com alguma coisa no intuito de tê-la como sua, não pode por si só gerar o direito à propriedade.

Se o direito à propriedade se fundamentasse na posse ocorreria a mesma quebra de igualdade já tratada anteriormente, posto que apenas os primeiros possuidores poderiam se tornar proprietários, os que “chegassem atrasados” já encontrariam os bens com os seus proprietários, não podendo assim através da posse se tornar proprietários.

2.2.3. Teoria do consentimento universal ou do contrato

O direito à propriedade aqui surgiria de um consenso universal ou de um contrato feito entre os indivíduos para respeitarem mutuamente a propriedade de um e de outro.

O que essa teoria não explica é que, no futuro, as pessoas que não participaram dessa convenção coletiva também vão ter que respeitar o direito de propriedade das outras. Ora, se se fundamenta esse direito na convenção, como pode alguém que não participou desta ser obrigado a respeitá-la? Ademais, o acordo engendrado pelas partes de respeitarem mutuamente o direito de propriedade de cada um, já pressupõe a existência desse direito.

Por fim, não podendo o homem renunciar ao direito à vida, não pode renunciar ao direito ao trabalho, posto que somente através do trabalho pode o homem garantir a sua subsistência na terra. Se o homem não pode abrir mão do trabalho ele não pode consentir em garantir a propriedade privada, posto que, se assim o fizer, estará privatizando os meios para a realização do trabalho. Ou seja, com a apropriação privada dos meios necessários para a realização do trabalho, inviabiliza-se o próprio trabalho para algumas pessoas (não-proprietárias), o que significa estar inviabilizando a própria vida delas.

2.2.4. Teoria do trabalho

Através do trabalho, o homem se apropria do que produz. Essa é a fundamentação básica desta teoria. Segundo Locke, o homem, ao trabalhar, incorpora algo que lhe é peculiar ao objeto sobre o qual trabalha, e, ao fazê-lo o transforma em propriedade sua.[17]

Considerando o pressuposto de Locke, cada um teria direito aos bens na medida do seu trabalho, o que não fundamenta o direito à propriedade da terra não cultivada. Além do que, tendo trabalhado um homem sobre uma matéria, seria ele, na lógica de Locke, proprietário dos frutos obtidos pelo seu trabalho e não proprietário da matéria sobre a qual trabalhou (posto que nela não há trabalho seu). E, mais ainda, a terra cultivada pelos camponeses seria deles e não de um patrão qualquer. No máximo, se aplicada a teoria do trabalho como fundamentadora do direito à propriedade, estar-se-ia por implantar o sistema socialista, como queria o francês Blanc: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.[18] A propriedade existiria com o fundamento no trabalho, não podendo ser mais, por conseqüência lógica da divisão social do trabalho, privada.

Com a propriedade privada, o trabalho deixa de ser uma condição de sobrevivência do gênero humano para ser um privilégio. E assim o é porque os meios de produção, necessários para a realização do trabalho, e para a conseqüente manutenção e reprodução da vida, estão nas mãos de uns poucos abastados proprietários.

No entanto, há outra interpretação para esta teoria. Para o alemão Radbruch, adotando-se o critério da personalidade do proprietário é possível não expropriar os proprietários dos meios de produção, quando da aplicação da teoria do trabalho:

“É conveniente notar que esta teoria, - em harmonia com a qual o Código Civil (§950) preceitua que todo aquele que, por meio de reelaboração ou transformação de qualquer matéria-prima produzir um objeto, adquire nele a propriedade, - já representaria, quando aplicada ao atual estado econômico, a implantação do socialismo , se não fosse a circunstância de a interpretação da lei atender aqui por transformador ou especificante, não aquele por meio de cujas mãos o trabalho foi efetuado, mas aquele em cujo nome ele se fez.[19]

Se a teoria se fundamenta no trabalho, como interpretar que a propriedade será daquele em nome de quem o trabalho foi feito? Ademais, se existem proprietários privados dos meios de produção é porque se quebrou o pressuposto do trabalho como gerador do direito à propriedade, pois o trabalho realizado nos meios de produção (por seu caráter social) foi realizado por várias pessoas. Essa teoria só prova que com sofismas e retórica é possível transformar água em vinho.

2.2.5. Teoria da prescrição ou da usucapião

Para esta teoria, o decurso do tempo fundamenta o direito à propriedade. No entanto, para que o decurso do tempo haja como legitimador do direito à propriedade, faz-se necessário que haja uma posse anterior. Esta teoria é um desdobramento da teoria da posse, não basta, porém, que a pessoa possua para ser proprietário, a posse precisa ser pública, pacífica e ininterrupta. Deve, ainda, o possuidor estar de boa fé e possuir justo título.

O que se vê aqui é que a teoria da posse por si só não poderia justificar o direito à propriedade, então os juristas fizeram uma construção um pouco mais elaborada para fundamentá-la. Entretanto, como pode o possuidor pelo fato de possuir por algum tempo, seja de que forma for, adquirir o direito à propriedade? O decurso do tempo se tornou, milagrosamente, fundamento de direito. Aqui já se disse que um fato não pode gerar um direito, logo, como pode o fato de alguém possuir um bem por um determinado período de tempo ser fundamento do direito à propriedade daquele bem? A prescrição é uma ficção criada pela lei, seria então a lei criando o direito à propriedade.[20]

Se, apesar das contestações firmadas acima, se quiser a prescrição como fundamentadora do direito à propriedade, logo, a propriedade é de toda a comunidade, haja vista ter sido esta a primeira possuidora, inclusive, por um decurso de tempo bem maior do que o previsto nas leis civis.

2.2.6. Teoria do direito natural

A propriedade seria, de acordo com a Encíclica Mater et Magistra, inerente à natureza humana, e obter direitos de propriedade seria a finalidade dos homens na terra, sendo o direito de propriedade uma doação de Deus aos homens:

“O direito de propriedade, mesmo dos bens de produção, tem valor permanente, pela simples razão de que é um direito natural, baseado na prioridade ontológica e finalidade dos indivíduos sobre a sociedade. A história e a experiência demonstram, além disso, que sob regimes políticos que não reconhecem o direito de propriedade privada, até dos bens de produção, as expressões fundamentais da liberdade são comprimidas e abafadas”.[21]

Ainda de acordo com esta teoria, as palavras de Justice Parteson, no caso Vanhorne’s Lessee versus Dorranse em 1795:

“…from these passages it is evident that the right of acquiring and possessing property and having it protected is one of the natural inherent and unalienable rights of man. Men have a sense of property: Property is necessary to their subsistence, and correspondent to their natural wants and desires; its security was one of the objects, that induced them to unity in society. No man would become a member of a community, in which he could not enjoy the fruits of his honest labor and industry. The preservation of property then is a primary object of the social compact… Every person ought to contribute his proportion for public exigences; but no one can be called upon to surrender or sacrifice his whole property, real and personal, for the good of the community, without receiving a recompense in value”.[22]

Num determinado momento este autor já pende para a teoria do trabalho, além de já ter nessa passagem embutida a idéia de que em caso de desapropriação a indenização deve ser em dinheiro.

A propriedade como direito natural pressupõe no mínimo a igualdade da natureza entre os homens neste aspecto, posto que não é possível imaginar que poderia ela ser natural para uns e não existir para outros. Afinal, como bem pensou Proudhon, se Deus doou a terra para todos os seus filhos, por que alguns não receberam nada?[23]

A propriedade não pode ser um direito natural quiçá divino, pois sempre se busca saber a sua origem. Um direito natural é algo que sempre existiu, é parte integrante da natureza humana, logo, não haveria o menor sentido se perscrutar a respeito da sua origem. Quanto à liberdade, por exemplo, ninguém busca saber quando esse direito se originou. Ademais, o direito é um objeto cultural; é, necessariamente, criação humana.

2.2.7. Teoria da Lei

Fundamenta esta teoria o direito à propriedade na lei. Para os seus adeptos, antes da lei não havia propriedade (vale argumentação feita na exposição sobre a origem da propriedade).

O Estado, como entidade legitimada a produzir leis, é o único capaz de limitar um determinado bem (propriedade) ao uso, gozo e fruição de uma pessoa em detrimento dos demais. É verdade que o Estado reconhece o direito de propriedade a alguém através do seu corpo de leis, mas esse reconhecimento só é possível porque existe um preceito jurídico já positivado que o garante. Fundamentar a existência desta garantia na própria lei é afirmar: ‘o direito de propriedade se fundamenta no direito de propriedade’, uma tautologia absurda.

2.2.8. Teoria da Liberdade

Essa teoria tem como pressuposto que o direito à liberdade é um direito natural, e faz decorrer dele o direito à propriedade, que será também natural. Assim o fundamenta o autor, Baptista Martins: “A justificação básica do direito à propriedade é, portanto, o direito à liberdade; fundamentando-se na necessidade e na vontade do homem, é justa, racional, permanente e progressiva”.[24]

Se a liberdade é um direito natural, todos têm esse direito. Sendo o direito à liberdade o que fundamenta o direito à propriedade, todos têm o direito de se apropriar. Entretanto, apesar do poder de apropriação da liberdade ser ilimitado, os bens a serem apropriados não o são. Não é possível então que se garanta a apropriação (fundamentada na liberdade) numa época – enquanto há bens a serem apropriados – e não se garanta esta mesma apropriação em outra época – quando não mais houver bens –, posto que, por conseqüência, algumas pessoas não poderiam mais exercer o seu livre e natural direito de apropriação. Que direito natural é esse que algumas pessoas têm e outras não?

Sendo os bens passíveis de apropriação finitos, com a implementação desta teoria alguns exerceriam o direito livre e natural de apropriação; enquanto outros, os retardatários, não poderiam fazê-lo. Isso gera uma sociedade em que alguns possuem e outros não; uma sociedade de classes. Disto decorre que quem possui tem poder sobre quem não possui. O que antes o próprio autor afirmou em relação à teoria do trabalho, agora se volta contra ele: “E a teoria é autoritária porque preconiza a supremacia de uma classe sobre outra”.[25]

Este autor quer provar ainda que o fato de um povo ser livre é que faz com que ele se desenvolva produtiva e tecnologicamente (a liberdade seria a essência do fenômeno do desenvolvimento econômico). Ele desvirtua, no entanto, a ordem dos acontecimentos. É o próprio desenvolvimento histórico de uma região (como se produz, o quê, como se dá a circulação e a apropriação dos bens produzidos) que vai condicionar o grau de liberdade dessa sociedade. Em outras palavras, não é o fato de algumas pessoas se reunirem e se declararem livres que faz com que seja possível ocorrer desenvolvimento numa região. Marx e Engels, no prefácio à ‘Ideologia Alemã’ há muito já refutaram essa hipótese, numa anedota:

“Há pouco tempo, um homem de bom senso imaginava que as pessoas se afogavam unicamente porque eram possuídas pela idéia da gravidade. Tão logo tirassem da cabeça essa representação, declarando, por exemplo, ser uma representação religiosa, supersticiosa, estariam a salvo de qualquer risco de afogamento. Durante toda a sua vida, ele lutou contra a ilusão da gravidade, cujas conseqüências nocivas as estatísticas lhe mostravam, através de numerosas e repetidas provas”.[26]

Pela teoria da liberdade enquanto fundamento do direito de propriedade, deveria ser o Brasil um país deveras desenvolvido, já que faz parte da sua essência ser livre.

Conclusão acerca das fundamentações apresentadas:

Uma teoria para ser válida deve se constituir num sistema sólido, suficientemente coerente para ser uma regra aplicada indistintamente e em todas as épocas (ou, pelo menos, as exceções à regra devem seguir parâmetros regulares e lógicos). Uma teoria fundamentadora do direito à propriedade que o faz apenas quanto às primeiras apropriações, “mudando a regra do jogo” posteriormente, é uma teoria de conveniência, nada tendo de científica. Assim, nenhuma das teorias aqui apresentadas conseguiu fundamentar o direito à propriedade privada de maneira satisfatória.

Assim como o ar e a água, a terra (e os demais meios necessários à produção e reprodução da vida) é indispensável à nossa sobrevivência, por isso não pode ser coisa susceptível de apropriação, haja vista que alguns seriam os proprietários e gozariam dos benefícios que ela traz e os outros… Como a terra é limitada, ao contrário do ar, então o seu uso deve ser regulamentado, mas não em benefício de uma casta privilegiada, como tem ocorrido preponderantemente ao longo da história, e sim no de toda a coletividade.

Capítulo III - DO CONCEITO JURÍDICO DE PROPRIEDADE -

3.1. Evolução do conceito

A exceção de Robson Crusoé, os seres humanos têm necessidade de estabelecer relações entre si. Além de ser esta uma forma de garantir a sobrevivência da espécie, dá-lhes prazer a convivência mútua. Ao entrarem em relação, porém, pela própria diversidade humana, entram também em conflito. Para tentar minimizar e resolver esses conflitos (existentes ou em potencial), os homens criam regras de conduta comuns e aceitas por todo o grupo.

O costume é uma das formas de se fazer perpetuar no tempo um determinado comportamento existente; foi a principal forma encontrada no início da existência humana na terra para reger as relações humanas, além, é claro, da auto-tutela (a lei do mais forte de Darwin).

Já a partir de um certo grau de desenvolvimento humano e das relações que os homens encetaram entre si, tornou-se imperativo que fossem criadas normas institucionais, que tivessem um maior poder de coerção, o Direito. Para fazer valer as normas jurídicas criadas, entre outras coisas, era necessária a existência de uma entidade superior que mantivesse todos sob o seu império, o Estado (não se trata aqui do Estado moderno). Numa sociedade dividida em castas, não terão essas normas caráter emancipatório, e sim opressor.

No caso da propriedade privada, a sua existência para alguns significa a sua inexistência para outros, inclusive por uma questão matemática (material). Urgia, então, que se fizesse legítima a propriedade privada, tentou-se isso com as várias fundamentações já vistas. Ademais, era primordial dar segurança aos proprietários, o que Estado fará, tutelando o bem ‘propriedade privada’ através da criação do direito de propriedade.

Baptista Martins levanta uma discussão interessante sobre a distinção entre ‘direito à propriedade’ e ‘direito de propriedade’.[27] Para ele é errôneo falar-se em ‘direito de propriedade’, posto que não há direito contra direito (o direito, sendo por definição ilimitado entraria em contradição com os limites existentes em relação à propriedade); enquanto que se falar em ‘direito à propriedade’, abre-se possibilidade às limitações, sem cair-se em contradição. Uma distinção mais evidente é que ao falar-se em ‘direito à propriedade’, está-se falando em um direito abstrato que alguém tem à propriedade em geral; enquanto que ao falar-se em ‘direito de propriedade’, está-se a falar num direito concreto de alguém em relação a uma propriedade determinada.

Essa distinção é importante, pois o Estado vai garantir o direito de propriedade. Ou seja, àqueles que já possuem propriedade está garantida a sua permanência como proprietário, além, é claro, dos direitos decorrentes do direito de propriedade, a exemplo da sucessão. Porém, àqueles que não possuem nenhuma propriedade, ironicamente, garante-se o dever de respeito à propriedade alheia.

No mundo ocidental, o direito escrito de que se tem notícia teve sua origem com o direito romano. A “proprietas” (propriedade) para o direito romano era o jus utendi, fruendi et abutendi.[28] Esse absolutismo da posse ou o seu abuso se caracterizava por poder o proprietário fazer o que quisesse com a sua propriedade, inclusive deixar os frutos apodrecerem, matar um rio, realizar queimadas, criar escravos, etc. Nesta época, inclusive, o próprio corpo do proprietário respondia pelas suas dívidas.[29] Modernamente, este tipo de propriedade se caracterizaria como individualista, posto ter cada coisa apenas um dono.

Na Idade Média, com o aparecimento dos feudos (parte da terra sob o domínio de um senhor, dito ‘feudal’), a propriedade adquire uma nova forma. O proprietário do feudo concede a sua propriedade a outras pessoas, sob o sistema de suserania e vassalagem.[30] Os senhores feudais abrigam em suas terras camponeses que, em troca, lhe deverão obediência, sendo seus servos. Grande parte do trabalho produzido na terra tem que ir para o senhor, e os servos que trabalham na terra devem ainda lhe pagar uma série de encargos. Os servos estão para sempre vinculados à terra, considerados pelo senhor feudal como se fossem acessões da sua propriedade. Sobre um mesmo bem concorrem diversos proprietários. O senhor feudal tem o domínio eminente da propriedade; os servos, o domínio útil.

Na Inglaterra, em 1215, a law of the land (lei da terra) já garantia no ponto 31 a propriedade privada, além de outros direitos fundamentais inaugurados pela Magna Carta.[31]

Com a Revolução Francesa, que significou uma ruptura com o feudalismo, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) – inspirada na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América –, a propriedade se consolidou como um direito sagrado e inviolável, assim protegido pela Declaração:

Art. 17: “La propriété étant um droit inviolable et sacré, nul ne peut en être prive, si ce n’est lorsque la necessite publique légalement constatée l’exige évidemment et sous la condition d’une juste et préalable indemnité ”. [32]

Embora não figure na palavra de ordem da revolução (liberté, egalité et fraternité - liberdade, igualdade e fraternidade), a propriedade foi um dos quatro direitos considerados naturais e imprescritíveis do homem na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, junto à liberdade, à igualdade e à segurança. Entretanto, diferentemente da liberdade, da igualdade e da segurança, o direito de propriedade é o único que se opõe ao direito de outros, pois todos podem ser livres, iguais perante a lei e necessitarem de segurança sem que o direito de um se oponha ao do outro. Exemplo: a liberdade do rico não retira nem diminui a do pobre. Quanto à propriedade, porém, o direito de um retira o do outro necessariamente, posto que esse direito de propriedade precisa ser defendido contra os outros (não-proprietários). Outra importante diferenciação que se há de fazer é que em relação à igualdade, à liberdade e à segurança, os homens estão associados entre si; já em relação à propriedade privada não (pelo menos assim não se encontram em relação à propriedade capitalista, cujo germe à época já se encontrava em gestação).

Deve-se ressaltar que a partir da Revolução Francesa, a propriedade passou a admitir como limitação aos seu exercício a desapropriação por necessidade pública, desde que houvesse prévia indenização.

Mais tarde, o Código de Napoleão novamente modifica o conceito de propriedade:

Art. 544: “La propriété est le droit de jouir et de disposer dês choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’em fasse pás n usage prohibé par la loi et lês règlements”.[33]

É somente com a Constituição do Reich Alemão de 1919, conhecida como Constituição da República de Weimar, que o direito de propriedade, reconhecido por este Estado, passa a ter um caráter “social”. A partir daí, para o exercício do direito de propriedade é necessário que o uso da propriedade constitua também um serviço para o bem comum, tenha, por assim dizer, uma função social:

Art. 153: “A Constituição garante a propriedade, cujo conteúdo e limites serão fixados pela lei. Não se procederá a nenhuma desapropriação senão por utilidade pública e com submissão à lei. (…) A propriedade obriga. Seu uso constituirá, também, um serviço para o bem comum”.[34] (grifo da Autora).

Antes da Constituição alemã, a Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a Constituição da Revolução de 1917, já dava um outro direcionamento ao direito à propriedade, excluindo a propriedade privada sobre os meios de produção, consagrou:

Art. 4o: “A base econômica da URSS é constituída pelo sistema socialista de economia e pela propriedade socialista sobre os instrumentos e meios de produção, firmemente assentados como resultado da liquidação do sistema capitalista de economia, da abolição da propriedade privada sobre os instrumentos e meios de produção e da supressão da exploração do homem pelo homem”.[35]

Evidencia-se aqui que o teor social que uma e outra Constituição garante é deveras diferente. A propriedade para a Constituição Russa da época não precisava cumprir uma função social, porque ela era social.

Era uma época revolucionária. No México em 1917, inaugura-se o chamado constitucionalismo social, com a constitucionalização de importantes direitos sociais (direitos de segunda geração). A Alemanha, com a social-democracia, seguiu a tendência mundial do pós-guerra no sentido da criação e constitucionalização desses direitos, fruto da luta dos trabalhadores, e a propriedade não poderia escapar a tal apreciação.

Na Declaração Universal dos Direito Humanos da ONU – Organização das Nações Unidas, de 1948, a propriedade também encontraria guarida:

Art. XVII, 1 e 2: “Toda pessoa têm direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. Ninguém será arbitrariamente privado da sua propriedade .[36]

Essa proteção que as organizações internacionais deram à propriedade teve relação com a guerra fria que estava acontecendo e o chamado “perigo comunista”, o medo de uma possível socialização da propriedade dos meios de produção.

No Brasil, o instituto do direito de propriedade foi inspirado pelo Direito romano e pelo Código de Napoleão. Até a Constituição de 1934, quando pela primeira vez o princípio da função social da propriedade se fez sentir no Ordenamento Jurídico, a propriedade era um direito garantido em toda a sua plenitude, não conhecendo qualquer tipo de limitação. O desenvolvimento deste princípio no Brasil e no mundo será apreciado no Capítulo IV.

[...]


[1] Cf. José de Souza Martins, A militarização da questão agrária no Brasil (Terra e poder: o problema da terra na crise política), p. 105.

[2] Cf. Anexo. Tem-se como exemplo desses conflitos as recentes ofensivas contra o Movimento, em Corumbiara e em Eldorado dos Carajás.

[3] O movimento dos trabalhadores rurais sem terra foi criado em 1984, no Paraná, através da pressão das ocupações uma série de desapropriações já se efetivaram, sendo criados os assentamentos. No começo do ano 2000, cerca de 400.000 famílias viviam em quase 1000 acampamentos espalhados pelo Brasil.

[4] José de Souza Martins, op. cit., p. 103.

[5] M. Suvórova e B. Románov, Que é a propriedade?, p. 8.

[6] Friedrich Engels e Karl Marx, A ideologia alemã, p. 21.

[7] Apud José Diniz de Moraes, A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988, p. 13.

[8] Thomas Bulfinch, A idade da fábula (O livro de ouro da mitologia), p. 22.

[9] Cf. Geopédia, pp. 58-61.

[10] Cf. Fustel de Coulanges. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e Roma, p. 10 .

[11] Cf. Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, passim.

[12] Importante observar que a família acima referida não compreende a família tal como a conhecemos hoje. A gens pode ser considerada como uma comunidade / união de várias famílias. Sendo a descendência medida pela linha materna, o que era possível ser conhecido na época.

[13] Cf. Rodrigo Batista Martins, A propriedade e a ética do capitalismo, pp. 21-33.

[14] Não se está falando aqui no Estado moderno, mas nas organizações de governo de uma determinada área, como a Pólis grega, o Império romano, etc.

[15] Pierre-Joseph Proudhon, O que é propriedade, p. 51.

[16] Idem, ibidem, p. 61.

[17] Cf. John Locke, 2o Tratado sobre o governo – a propriedade, p. 51.

[18] Apud Rius, Conheça Marx, p. 89.

[19] Apud Rodrigo Batista Martins, op. cit ., p. 48.

[20] Cf. item 2.2.7.

[21] Apud Rodrigo Batista Martins, op. cit., p. 55.

[22] Apud Domingos Sávio Dresch da Silveira, A propriedade agrária e suas funções sociais, p. 131. Tradução da Autora: “…por esta passagem fica evidente que o direito de adquirir, possuir e proteger a propriedade é um direito natural e inalienável inerente ao homem. Os homens têm o sentido da propriedade: a propriedade é necessária para a sua subsistência, correspondendo aos seus desejos e às suas vontades naturais; a segurança da propriedade é um dos motivos que induziram os homens a se unirem em sociedade. Nenhum homem se tornaria um membro da comunidade, na qual ele não pudesse usufruir dos frutos do seu trabalho e indústria honestos. A preservação da propriedade por isso é o objeto primário da composição social… Toda pessoa deve contribuir proporcionalmente em relação às exigências públicas; mas ninguém pode ser compelido a render-se ou sacrificar todo o seu patrimônio, real e pessoal, para o bem da comunidade, sem receber uma recompensa em dinheiro”.

[23] Op. cit., p. 65.

[24] Op. cit., p. 69.

[25] Idem, ibidem, p. 49.

[26] Op. cit., p. 4.

[27] Rodrigo Batista Martins, op. cit., p. 69.

[28] Cf. José Cretella Júnior, Curso de direito romano, p. 170. Tradução: O direito de usar, fruir e abusar da coisa.

[29] Cf. a esse respeito o livro de Shakespeare O Mercador de Veneza.

[30] A rigor, não havia proprietários de terra na Idade Média, posto que o “dono” da terra era Deus. O que ocorria é que o rei, como representante divino entre os homens, tinha a posse de todas as terras e, em nome de Deus, distribuía essas terras para quem melhor lhe conviesse.

[31] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos humanos fundamentais, p. 11.

[32] León. Duguit, Droit Constitutionnel, p. 274. Tradução: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização”. O ‘desde que’ se justifica, na verdade, para assegurar o direito de propriedade do outro.

[33] Idem, ibidem, p. 275. Tradução: A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos.

[34] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 170–171.

[35] Rodrigo Batista Martins, op. cit, p. 5.

[36] Brasil, Ministério da Justiça - Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Política Nacional do Idoso. Declaração Universal dos Direitos Humanos, p. 35.

Excerpt out of 137 pages

Details

Title
A Função 'Social' da Propriedade
Grade
9 von 10
Author
Year
2000
Pages
137
Catalog Number
V109800
ISBN (eBook)
9783640079780
File size
857 KB
Language
Portuguese
Keywords
Função, Social, Propriedade
Quote paper
Daiana Vasquez (Author), 2000, A Função 'Social' da Propriedade, Munich, GRIN Verlag, https://www.grin.com/document/109800

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