Excerpt
1. Introdução
“(…) e sua dita Magestade conservará em qualidade de conquista para a unir perpetuamente aos seus domínios e vassalos, a Praça de Olivença, seu território e povos desde o Guadiana; de sorte que este rio seja o limite dos respectivos Reinos, naquela parte que unicamente toca ao sobredito território de Olivença.”
Art. III do Tratado de Badajoz (6-6-1801)[1]
A caricatura inglesa, que faz alusão à assinatura do Tratado de Badajoz por Portugal, depois da chamada “Guerra das Laranjas” de 1801, acentua a impotência e fraqueza do governo português face ao fracasso da sua tão desejada neutralidade num clima internacional tenso, com todas as consequências fatais desta inclusão forçada. A Espanha é representada aqui pelo “Príncipe da Paz”, D. Manuel Godoy[2]. Por consequência da guerra entre os dois vizinhos ibéricos com palco privilegiado no Alto Alentejo, que se explica só no contexto internacional e global do conflito entre a França napoleónica expansionista e a Inglaterra, potência suprema nos mares, a cidade portuguesa de Olivença com as suas terras foi incorporada “perpetuamente” pela Espanha que tinha desejado há muito o rio Guadiana como fronteira natural.
Neste trabalho trata-se de examinar as causas e circunstâncias da perda de Olivença – “uma cidade portuguesa «de jure», administrativamente espanhola «de facto»”[3] – no conflito das duas mais fortes potências da época, a França e a Inglaterra. Como é que a guerra entre Portugal e Espanha está incluída num sistema de interesses estratégicos anglo-franceses, no qual Olivença constitui uma “moeda de troca entre a França e a Inglaterra”[4]? Até que ponto a luta no Alentejo pode ser vista como primeira etapa das sucessivas incursões bélicas francesas, como “prólogo”[5] das invasões napoleónicas dos anos 1807-1810/11?
Outra razão para uma perspectiva histórica globalizante indispensável sob a questão de Olivença e o Tratado de Badajoz, é fundada na projecção americana da controvérsia europeia, ou seja no velho problema dos limites no Brasil e na criação seguinte do Uruguai como nova nação. Esta questão faz também parte do empenho predominante das grandes potências continentais e da Inglaterra para definirem, na Europa como nas colónias, as próprias áreas de interesse.
2. A Península Ibérica na época da Revolução Francesa
É por ocasião e no espírito do Tratado de Amizade, Garantia e Comércio no Real Sítio do Pardo (Tratado do Pardo) entre Portugal e Espanha que se realizam os casamentos da Infanta Carlota Joaquina com o Príncipe Regente D. João e de D. Mariana Vitória com o Infante de Espanha D. Gabriel. Trata-se de uma manifestação das boas relações na Península que, mais tarde, encontrará reforço e nova expressão na convenção de Madrid, em 15 de Julho de 1793.
No ano da eclosão da Revolução Francesa, em 1789, Carlos IV é aclamado rei de Espanha, cujo primo, Luís XVI, no período mais agudo da revolução, que deverá romper definitivamente com a França do Antigo Regime, é condenado e executadado em Janeiro de 1793, não obstante as diligências espanholas. Este acto é seguido por uma reacção decidida da Espanha, que a 23 de Fevereiro de 1793 declara guerra à França.
O Tratado de Aranjuez (25 de Maio de 1793) entre a Espanha e a Inglaterra é concluído sem o conhecimento do governo português, que assina, por sua vez, uma convenção de auxílio mútuo com a Espanha em 15 de Julho contra a França e, além disso, um tratado de aliança com a Inglaterra a 26 de Setembro de 1793. Estes tratados levam Portugal a participar, ao lado de Espanha, nas Campanhas do Rossilhão e Catalunha (1793-1795) com 6 000 homens sob o comando do Tenente- General John Forbes Skellater.
Nessa altura, portanto, as relações entre Portugal e Espanha “já não eram apenas bilaterais uma vez que os fantasmas da Inglaterra e da França pesavam sempre sobre os Estados peninsulares”[6]. E este peso dos interesses opostos e contraditórios das duas potências, durante o período seguinte, será decisivo não só para a política interna e externa na Península Ibérica, como ainda quanto à neutralidade portuguesa. Manifestar-se-á constantemente no jogo dúbio de ganhar aliados e de isolar o inimigo. O conflito hispano-francês – a Guerra do Rossilhão – acaba a 22 de Julho de 1795 com a Paz de Basileia que, outra vez, se realiza sem o conhecimento do governo português e que proporciona a D. Manuel Godoy o título de “Príncipe da Paz”.
3. O período de 1795-1801: tensão permanente e neutralidade frágil
Embora Portugal não tivesse declarado formalmente guerra à França e, por conseguinte, “de jure” não existisse nenhum estado de guerra, a sua relação com esta ficava num estado confuso, efectivamente de guerra. Por isso, a política externa de Portugal, após o Tratado de Basileia, da qual se encontrava encarregado Luís Pinto de Sousa Coutinho[7], teve como objectivo supremo o reconhecimento oficial da sua neutralidade. Não podia estabelecer a paz com a França sem romper a aliança com a Inglaterra, o que era preciso excluir por causa de interesses ultramarinos.
Depois de a Espanha, por consequência da Paz de Basileia, ter alterado radicalmente a sua política externa, aproximando-se da França e lembrando-se da Inglaterra como inimigo tradicional no âmbito colonial, a situação tornou-se muito difícil para Portugal. Ficou-lhe a escolha entre a entrada na aliança, abandonando a Inglaterra, da qual não havia agravo nenhum que justificasse a ruptura da aliança, e um possível ataque pela França e pela Espanha. Entretanto, a aproximação hispano-francesa depois do Tratado de Basileia era ainda afirmada no Tratado de Santo Ildefonso, em[8] de Agosto de 1796, que converteu a Espanha definitivamente numa aliada da República Francesa.
Apesar de Portugal decretar a sua neutralidade no dia 17 de Setembro de 1796, as dificuldades da sua manutenção no caso dum conflito anglo-espanhol eram evidentes por causa dos tratados existentes com a Inglaterra. Quando, a 7 de Outubro, a Espanha acaba por declarar guerra à Grã-Bretanha, as relações entre Portugal e a Espanha estão tensas. Sob a pressão francesa, D. Manuel Godoy faz concentrar contingentes de tropas junto às fronteiras com Portugal, especialmente na Extremadura, para obrigar o vizinho a negociar com a França, que, no caso de um ataque, precisava da ajuda espanhola quanto à passagem inevitável pelos seus territórios. Uma penetração marítima não interessava por causa da inferioridade francesa face à supremacia naval britânica.
Torna-se evidente que a maior parte dos problemas entre os dois vizinhos peninsulares eram causados pela acção dos respectivos aliados.8 O objectivo da França era dar paz a Portugal em troca do abandono da aliança com a Inglaterra. O período de 1795 até 1801 não era só marcado profundamente por uma tensão constante e frágil neutralidade portuguesa, como ainda pela dependência total da política portuguesa de Espanha, de França e da Inglaterra. Caracteriza-se também pela busca francesa contínua de aliados, que pudessem equilibrar o enorme potencial inglês. As relações ibéricas, naquela altura, eram também muito complexas: mantinha-se sempre uma certa duplicidade da parte de Portugal em relação à Espanha e à Inglaterra, por um lado, e da parte da Espanha em relação à França e a Portugal, por outro lado. Nestes anos, porém, Portugal pouco fez, no campo militar, para renovar os métodos e características do seu exército antiquado. Na Batalha do Cabo de S. Vicente, a 14 de Fevereiro de 1797, a Inglaterra regista uma grande vitória contra a esquadra franco-espanhola e mostra-se, outra vez, que “a Inglaterra é senhora dos mares”[9].
[...]
[1] Carlos Eduardo da Cruz Luna, Nos caminhos de Olivença, Estremoz 32000, p. 107.
[2] Manuel Domingo Francisco Godoy y Álvarez de Faria Ríos Sánchez Zarzosa (nasceu em 12 de Maio de 1767 em Alcuera, Badajoz, e morreu em 7 de Outubro de 1851 em Paris): trata-se de uma figura muito contraditória na história de Espanha; depois de uma ascensão meteórica, é nomeado “Príncipe da Paz” pelo rei Carlos IV em virtude da Paz de Basileia, 1795.
[3] Luna, p. 11.
[4] António Pedro Vicente, “Olivença. Início da expansão napoleónica na península”, in: História, Ano XXIII (III Série), 36: “150 Anos da Regeneração”, Lisboa 2001, p. 50.
[5] Ibidem.
[6] António Ventura, “«Deus Guarde V. Exa Muitos Anos». Manuel Godoy e Luís Pinto de Sousa (1796- 1798)”, in: Revista de Estudios Extremeños, Tomo LVII, n° III, Badajoz 2001, p. 974.
[7] Luís Pinto de Sousa Coutinho (nasceu em Leomil, em 1735, e morreu em Lisboa, em 1804): foi ministro da guerra e dos estrangeiros na época do tratado de mútuo auxílio com a Inglaterra, do qual resultou a participação portuguesa nas Campanhas do Rossilhão e Catalunha; plenipotenciário português por ocasião do Tratado de Badajoz, 1801.
[8] Ventura 2001, p. 976.
[9] António Ventura, O combate de Arronches. Um episódio da “Guerra das Laranjas”, Arronches 1989, p. 10.