"Ciência em ação" de Bruno Latour. Um texto de acompanhamento de leitura e sugestões de monografias


Unterrichtsentwurf, 2000

42 Seiten, Note: 10,0


Leseprobe


Introduçâo: Abrindo a caixa prêta de Pandora

Usando uma espécie de dinámica cinematográfica, Latour analisa tres momentos na história recente da ciencia e da tecnologia:

1985: John Whittaker, no Instituto Pasteur, em Paris, analisa sequéncias de DNA e, com os dados, monta imagens tridimensionais da dupla hélice, com um computador Eclipse MV/8000.

1951: James Watson e Francis Crick procuram qual seria a estrutura da molécula de DNA, tentando várias hipóteses.

1980: Tom West, na empresa Data General, nos EUA, tenta pôr para funcionar um protòtipo da máquina que viria a ser a Eclipse MV/8000.

Os exemplos sao, bem de acordo com o subtítulo do livro, tirados tanto de contextos científicos como de tecnológicos. A distinçao ciéncia/tecnologia ou ciéncia pura/ciéncia aplicada nao interessa ao autor. Ele encontrará em todas essas atividades, doravante chamadas tecnocientíficas, similaridades que impedem qualquer distinçao clara e útil.

O que mais importa é o conceito de caixapreta. Em 1985, tanto o caráter de dupla hélice do DNA como o funcionamento do Eclipse sao caixas pretas. Ou seja, cabe seguir adiante e nao reabrir tais caixas e examinar seu conteúdo. Em 1951,a estrutura do DNA era urna caixa aberta, que só o trabalho de Watson e Crick (evidentemente, depois de a comunidade científica estar devidamente convencida) viria a fechar. O mesmo vale para o trabalho de Tom West, em 1980.

E nessa introduçao que Latour também apresenta a dupla face de Jano, o Jano científico. A face direita representa a ciencia em construçao e a esquerda, a ciencia pronta. A face esquerda sempre dirá, sobre as atividades tecnocientíficas, sentenças que apelam para noçôes de "verdade", "realidade", "principios", "rigor" etc. A face direita, que representa a ciencia em construçao, sempre falará de "convencimento", "decisao", "estratégia" etc. E que o apelo à verdade ou à realidade só pode ser feito, para Latour, depois que a realidade foi estabelecida e, portanto, falar dela passa a ser falar a verdade. Mas, antes disso, ou o mundo nao existe (uma posiçao filosófica demais para o autor, que sempre evita o lamaçal dessas discussöes) ou nao temos meios de conhecê-lo e, assim, devemos tomar decisöes no escuro. Depois de tomada a decisao (e, especialmente, se a decisao foi frutífera), diremos que tomamos o caminho da verdade. Mas isso, enfatizemos, é sempre dito a posteriori.

[Textos em azul sao sugestöes para discussao entre os alunos, diferente dos textos em preto, que têm caráter apenas informativo.]

"Quem é esse Jano?" é uma questiúncula interessante. E o cientista, o tecnòlogo ou o estudioso da ciência? Difícilmente seria o tecnòlogo, pouco preocupado com esse tipo de coisa. Latour afirma que é "a ciência". OK. Pois, embora estude C&T, reconhece que os tecnólogos nao fazem esse discurso e que nem todo estudioso de ciência o segue. Assim, esse "a ciência" seria melhor entendido "os dentistas".

Anoçao de caixapreta é importante para diferenciar contexto e conteúdo. Em 1985, tanto a estrutura do DNA como o desempenho e confiabilidade do Eclipse sao parte do contexto. O conteúdo mesmo da pesquisa nao passa por ali, da mesma forma que, na seçao de materiais e métodos de um paper sobre clonagem, o cientista nao analisará a estrutura do DNA, discutirá que proteínas sao feitas a partir de aminoácidos etc. Issojá é parte do contexto ou seja, saiu do foco de atençao e foi para o cenário, cedendo lugar para que outras questöes desempenhem o papel principal. Mas, em algum outro ponto da história, essas peças de contexto nao eram ainda caixas pretas. estudar como essas caixas se fecham, como sao usadas quando fechadas e como podem ser eventualmente reabertas é o propósito do livro.

Latour nota que tanto West como Watson e Crick, no momento da descoberta (no momento em que a caixa preta está aberta) referem-se a seu objeto de estudo e às decisôes que tém de tomar para seguir adiante em termos que pouco tém a ver com o discurso da ciéncia fechada (da história da ciéncia que é reescrita quando a caixa preta está fechada):

West: organograma, gosto,protocolar, burocrático, minimizar riscos. Sao as expressöes que usa quando analisa um chip fabricado por um concorrente (p. 18).

Watson e Crick: suspense, tom,jogada, prazo depublicaçâo. Sao o que eles dizem quando julgam um paper de Linus Pauling, que descreve erradamente a estrutura do DNA (p. 20).

Nessa altura, a tese de Latour é bem forte: nao existe "a coisa" e "ojulgamento sobre a coisa". Se existisse (o que é a tese mais senso comum sobre a atividade científica), entao diríamos que West faz uma análise técnica e, depois, faz algumas consideraçoes sobre a empresa que criou o chip concorrente. Mas o fato é que, no momento de decisao, o julgamento tem de ser feito on thefly, sem que "a coisa" seja bem conhecida. Portanto, segue a tese de Latour: separar esse discurso em dois é um parti-pris ideológico sem muita sustentaçao. Se, ao contràrio, consoante com o método antropológico do autor, parte-se da observaçao pura e simples do discurso dos envolvidos, fica inevitável ver um discurso só, que é entendido por todos os atores, que nao param para separá-lo em partes. Essa separaçao é uma ferramenta de estudo usada por quem toma um partido realista e cumulativo da ciéncia e nao algo que esteja na atividade do cientista.

Watson teve de tomar uma decisao baseada numa dica de um colega de trabalho, que ia de encontro a tudo o que estava escrito nos livros de química de até entao. Como se decidiu? Analisando o currículo, dados pessoais, avaliando a psicologia leiga do colega. Isso é método? Só numa acepçao muito ampla da palavra (p. 23).

Esse exemplo ilustra a

Primeira màxima de Jano:

face esquerda: "Aceite os fatos sem discutir".

face direita: "Descarte os fatos inúteis".

West precisava decidir, quando todos o pressionavam, se devia seguir em frente às cegas ou construir um debugger para o Eclipse. O que seria mais eficiente?

Isso leva à

Segunda màxima de Jano:

face esquerda: "Fique sempre com a máquina mais eficiente".

face direita: "Decida o que é eficiencia".

West precisa terminar de debugar seu chip. Até que isso aconteça, a máquina, por definiçao, nao funciona. Depois que isso acontece (ou, pelo menos, depois que, na pràtica, ela passa por alguns testes considerados cruciais pelos envolvidos), ela começa a funcionar. Mas, diz o autor (p. 27): "Nenhuma das razöes pelas quais ela funcionará depois de acabada ajuda os engenheiros enquanto eles a estao construindo".

Isso exemplifica a

Terceira màxima de Jano:

face esquerda: "Quando a máquina funcionar, todos se convencerao".

face direita: "A máquina vai funcionar quando as pessoas interessadas estiverem convencidas".

Watson e Crick, jà dizendo conhecer a estrutura, ainda sentiam necessidade de sustentà-la para seus pares. E esse sustentar quer dizer até construir com metal um modelo mais bonito de ver. Apesar da controvèrsia ainda aberta, o fato é que o modelo que eles propöem concorda com outros fatos bem conhecidos. Isso ajuda no fechamento da caixa. Por que? Quarta màxima de Jano:

face esquerda: "O que è verdade sempre se sustenta".

face direita: "Quando as coisas se sustentam, elas começam a se transformar em verdade".

O subcapítulo no qual essas máximas sao expostas é intitulado "Quando o suficiente nunca é suficiente". E que, na hora da controvèrsia, o que parece, depois, suficiente para atestar a correçâo de uma teoria ou descriçao, nao é. A passagem de insuficiente para suficiente nao se dá por mera acumulaçao de resultados e, muito menos, pelo respeito a algum método. A análise dessa passagem é o propósito desse livro.

Todas essas máximas da face direita de Jano baseiam-se no principio de subdeterminaçao de Duhem-Quine (nenhum fator isolado por fechar uma controvérsia, p. 31).

Nessa altura, Latour propöe sua PRIMEIRA REGRA METODOLÓGICA

Estudamos a ciencia em açao e nao a ciencia ou a tecnologia prontas; para isso, ou chegamos antes de que os fatos e máquinas se tenham transformado em caixas-pretas, ou acompanhamos as controvérsias que as reabrem.

As regras metodológicas sao um pacote em relaçao ao qual é "tudo ou nada" (p. 36). Latour as escolhe em detrimento de outras devido a sua crença de que elas sao mais eficientes para acompanhar melhor, por mais tempo e mais independentemente o trabalho dos cientistas e tecnólogos. Essa é, assim, uma "metarregra" latouriana, que define como as regras sao escolhidas.

Uma coisa bem importante aqui é o papel passivo do estudioso. Ele "chega" e "acompanha". Ele nunca intervém. Se o fizer, forçara cientistas e tecnólogos a responderem a uma situaçao nao-standard, qual seja, explicar ao forasteiro o que estao fazendo, o que deverá muito provavelmente, resultar em um discurso ideológico.

A página 33, ele fala do trabalho do estudioso da ciencia, que é basicamente observar o processo que ele chamou em "Vida de laboratório", "subtrair modalidades".

Parte 1: Da retórica mais fraca à mais forte

Capítulo 1: Literatura Parte A: Controvérsias

Neste capítulo, Latour vai falar de modalidades positiva e negativa.

Positiva quando uma sentença, inserida em outra, é tomada mais como fato.

Negativa quando essa mesma sentença pende para a ficçao.

Antes, no entanto, dessas definiçoes, Latour situa seu método como uma "perspectiva relativista e crítica" (p. 39).

E crítica por nao ter um ponto de partida, por "seguir" e nao "guiar". E relativista por isso e por também nao assumir algum padrao como "a verdade", contra o qual regras, métodos e resultados praticados ou obtidos pelos cientistas deverao serjulgados.

O autor começa com o exemplo de uma sentença que diz que o sistema de mísseis norte­americano está em perigo devido à precisao de uns novos mísseis soviéticos. A sentença é verdadeira ou falsa? Se verdadeira, deve-se seguir um curso de açao, criando novos sistemas de defesa. Se falsa, deve-se seguir outro curso, verificando como pôde a agencia de espionagem obter informaçao imprecisa. Assumir uma perspectiva leva a açao posterior. Assumir outra leva às condiçoes de origem da enunciaçao. Seja como for, a sentença só entra para discussao quando está inserida em outras. Em si, nao é nada, nao gera decisoes, nao as exige. "Uma sentença pode ser tornada mais fato ou mais ficçao, dependendo da maneira como está inserida em outras. Por si mesma, uma sentença nao é fato nem ficçao; torna-se uma ou outra, mais tarde, graças a outras sentenças" (p. 45).

Aqui fica bem claro o relativismo. Existe uma parti-pris de que nao tem sentido examinar verdade de sentenças atómicas (com o perdao do positivismo implícito). O máximo que se pode pretender é coerencia com conjuntos de outras sentenças, estas também dependentes de outras, num holismo que lembra Quine e sua "máxima da mutilaçao mínima".

Uma vez que a ciencia trata de enunciados e dado que sua verdade nao pode serjulgada caso a caso, mas apenas quando estes estao ligados a outros, enunciados por outras pessoas, vem que a construçao da verdade é um fato coletivo (o que Latour define como seu

Primeiro Principio) e que existe urna "transformaçao retrospectiva do valor de verdade" de sentenças, conforme as modalidades em que venham a ser inseridas mais tarde.

Urna vez que Latour nao diferencia disciplinas, estamos aqui autorizados a incluir mesmo a matemática (bem na linha de Reuben e Hersh, “A experiencia matemática”, traduzido no BrasilpelaFrancisco Alves, em 1985).

Parte B: Quando as controvérsias se inflamam e a literatura se torna mais técnica

Até aqui, vimos como um enunciado nao tem valor de verdade desligado de outros e que as controvérsias podem ser expressas como alteraçoes de modalidade. A questao é que, em ciencia, essas controvérsias esquentam e é para resistir a essa temperatura que a ciencia produz seu resultado típico: o trabalho científico. (Em todo caso, dizer que esse veículo retórico é um dos menos estudados me parece retórico.)

Latour começa com uma conversa entre leigos em que um diz ao outro que o jornal noticia uma novidade científica. O outro duvida e o primeiro lança mao da qualidade dojornal. Ainda sem crédito, lança mao das credenciais do articulista, depois das credenciais de quem o articulista se refere, até que o oponente desiste. No fim de contas, a novidade é aceita nao pelo rigor, pela razao, mas por puro apelo à autoridade.

A face esquerda de Jano, da ciencia pronta, diz que "A ciencia nao se dobra a um monte de opinioes". Mas a face direita, da ciencia em construçao, diz "Como ser mais forte que um monte de opinioes?". A face esquerda nega o poder da retórica. A face direita o reconhece e o emprega, para ganhar discussoes.

Aqui, como em outras ocasioes, friso para os alunos que o livro nao é um "desmascaramento" da atividade científica, mas, antes, de uma pesquisa empírica sem, supostamente, pré-juízos. Friso que a ciencia é assim e que sua imagem pública nao é cinicamente estudada mas, antes, perfeitamente compatível com esse fazer. Além disso, friso que o impressionante é que isso "dá certo". Portanto, é preciso encontrar os motivos desse dar certo e nao ver nesse processo de pesquisa uma degradaçao da atividade científica, que a colocaría a par de outras menos prestigiosas. Quero, na verdade, evitar aquela leitura de que Kuhn foi vítima, de que, dado que a ciencia (em especial, no caso de Kuhn, a física) nao parece seguir método, entao tanto faz e tudo é ciencia. Nâo, a ciencia é uma grande conquista e dà certo. O que é preciso é descobrir por que, e isso só pode ser feito se abandonarmos o pré-juízo de que existe um método a-histórico.

Latour passa agora a uma anàlise da bibliografia de um artigo. A controvérsia é sobre a estrutura do fator de liberaçao do hormónio do crescimento. A. V. Schally afirma que ele existe e tem dada estrutura. Seus críticos (que se mostrariam certos) afirmam que a estrutura dada por Schally é a mesma de uma porçao de hemoglobina, um contaminante comum em extratos de encéfalo. Latour analisa um artigo de 1971. A bibliografia tem 32 artigos. Os mais antigos, aos quais o autor se reporta, dao-lhe inserçao na disciplina. O grosso é formado por artigos recentes, que lhe dao atualidade. Destes, só um que discorda do autor é reportado. Mas ele nao poderia deixar de o fazer, sob pena de estar escondendo sujeira debaixo do tapete. Cita-o, entao, mas diz que seus resultados sao equívocos. O diagrama de citaçoes que Latour usa (de onde terà vindo essa forma de mostrar bibliografia?) està na pàgina 60. O físico e filósofo Jean-Marc Lévy-Leblond afirma que a ciencia se desconhece para mais de10ou12 anos. Pelo diagrama, dà para ver que é mais ou menos isso mesmo. O grosso das citaçoes tem no màximo cinco anos de idade e a mais antiga fora publicada 23 anos antes do artigo.

O que Schally faz com a bibliografia? Segundo Latour (p. 66), segue algumas regras:

- enfraqueça os inimigos
- paralise os que nao puder enfraquecer
- ajude os aliados se eles forem atacados
- garanta comunicaçoes seguras com aqueles que o abastecem de dados inquestionàveis
- obrigue os inimigos a brigarem uns com os outros
- se nao tiver certeza de que vai ganhar, seja humilde e faça citaçoes atenuadas De fato, diz Latour: "sao regras simples: sao as regras dos velhos políticos".

Todas essas tàticas visam a uma só coisa: isolar o leitor. Quer discordar do artigo? Mas,

pense bem; olha quem está do meu lado! Assim, o artigo científico é apresentado como emblema de transparencia, como algo que intima o leitor a entrar. Mas exige que ele entre direito, seguindo as regras impostas pelo autor. Se sair da linha, a bibliografia (e a discussao a que ela é submetida,pois nenhuma sentença tem valor em si, mas apenas quando inserida no discurso de outros) o fará desistir. E uma calculada peça retórica, que visa a ganhar o argumento pela autoridade. Na superficie, as citaçoes seriam um resumo do arcabouço lógico do texto. Mas quem o perscrutaria? Ninguém, nem ele está ali para isso.

E claro que, numa situaçao ideal, voce poderá discordar ponto a ponto. Mas se nao publicar, ou se publicar e ninguém o ler e citar, entao a discordáncia, por mais abalizada que seja, terá sido nula. E como a construçao de fatos é coletiva, vale o que é corrente, nao o que é bem argumentado.

O tópico seguinte é dedicado justamente às questöes de citaçao. O sonho de um autor é ser lido. Depois, citado. Melhor ainda, bem citado. Melhor ainda, deixar de ser citado, quando seu nome deixar de figurar nos enunciados e a sentença inicial, perdendo modalidades negativas (que a levam para as condiçôes de enunciaçao) e ganhando positivas, deixa de vez a especulaçao para se tornar fato. A descoberta original se transformará em "conhecimento tácito" (p. 73) e passará ao contexto.

A página 75, existe um diagrama da história de um enunciado:

afirmaçao original (A é B) modalidades negativas M-(A é B) modalidades positivas e negativas M-+(A é B) algo (mostrou que (A é B)) ausencia total de modalidade (A é B) conhecimento tácito (silencio) incorporaçao (instrumentos)

Dai temos uma conclusao interessante:

a ideia corrente é de que, por um texto ser técnico, entao alija o leitor mas a verdade é que por um texto alijar o leitor, entao o chamamos técnico.

Parte C: Escrevendo textos que resistem aos ataques de um ambiente hostil

Em primeiro lugar, é preciso ver que os textos se fortalecem, conforme väo lançando mâo de mais referencias e, principalmente, quando trazem figuras e tabelas. Estas sao "o mundo" dentro do texto. No caso de referencias bibliográficas, o referente estava sempre fora do texto. Mas as figuras dizem outra coisa: "Voce duvida? Entao veja aqui mesmo".

A página 83, o autor comenta que, no texto científico, conforme o leitor se embrenha, nao vai da autoridade (do autor e de suas referencias) para aNatureza, mas de autoridade para mais autoridade.

Nem poderia ser diferente, dado o partido do autor. "ANatureza" é algo que, hoje, é "contexto", mas quejá foi objeto de controvèrsia. Enfim, é uma caixa preta fechada. Mas o fechamento dessa caixa é garantido por apelo a autoridades. Sempre que um autor tratar do contexto, terá duas atitudes. Ou o incorpora inteiramente (quando se sente seguro de que nao haverá o que arguir) ou o refere a autoridades (quando sente que o contexto, em vista do objeto em foco na discussao, poderia ser questionado e reaberto). Nao existe um fundo para esse poço. Ou o fundo é trivial: nossas sensaçoes indiscutidas, o senso comum atual. Que, no fundo, tambémjá foram objeto de controvérsia. Só que, como essas controvérsias nao tem data de abertura nem de fechamento, perdemos de vista inteiramente o caráter precário do senso comum.

E também nessa altura que Latour define "texto científico" (p. 82): "A transformaçao da prosa linear numa, digamos, formaçao entrelaçada de linhas de defesa é o sinal mais seguro de que o texto se tornou científico".

Depois de mostrar como os textos supostamente trazem o mundo para dentro deles, Latour discute tres estratégias de estratificaçao de textos, que tornam os artigos científicos mais que descriçoes localizadas e lhes dao ar de falar de muito mais do que falam na realidade. Enfim, Latour vai buscar na retórica os mecanismos da induçâo.

Tâtica 1: EmpUhamento

Suponha um texto que discuta mecanismos renais em mamíferos. De fato, o pesquisador estudou:

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Agora, tudo vai depender do crédito do pesquisador. Da mesma forma que falamos em modalidades positiva e negativa, falamos em induçao. Se o pesquisador perde crédito, suas asserçoes vâo sendo inseridas em modalidades negativas, que as levam para montante, para as condiçoes iniciais de enunciaçao. Enfim, pensando em termos de induçao, levam-no de mamíferos para hamsters e, daí, para très fatias de carne.

Como lembra o autor (p. 86), "um texto é como um banco: empresta mais dinheiro do que tem em seus cofres".

Isso vale para praticamente qualquer texto, mesmo os filosóficos mais puros. Conforme o crédito que dermos a Descartes, as meditaçoes dizem respeito à razao ou a um homem sozinho que pensa um tanto estranhamente. A sequència seria homem sozinho » todo homem » a razao. Num limite, estaremos falando em filosofia. No outro, em biografia.

Esse empilhamento segue très regrinhas: (1) nunca pôr camadas exatamente uma sobre a outra, senao nao há ganho, e vocè quer formar um arco, nao uma torre; (2) nunca pular camadas, a menos que vocè esteja absolutamente seguro de que nao há ninguém na plateia para questioná-lo; (3) sempre usar o material exato: provar um ponto usando exatamente o que é necessàrio e suficiente. Se vocè usar mais que o suficiente, a prolixidade poderá ser interpretada como insegurança. Se vocè usar menos, seu discurso será interpretado como carente de argumento.

Tàtica 2: Cenografia e enquadramento

Neste ponto, Latour entra com o que define como "personagens semióticos". Amelhor forma de ganhar o leitor é colocá-lo no texto. Da mesma forma que, num filme ou livro eficiente, espera-se que o leitor se identifique com um dado personagem. Isso facilita o fluxo do texto e, apesar de manter autonomia para o leitor, tolhe-o de perguntar muito. Afinaljá existe no texto alguém que levanta as objeçôes. E elas sao tao boas e o autor as responde tao bem! Se tudo der certo, o leitor aceitará inteiramente a argumentaçao, justamente porque seu personagem semiótico a aceitou. E isso o que o autor espera.

Os autores também se colocam no texto dessa forma. Fora dele, sao um grupo de homens e mulheres (seis, no caso de um artigo que Latour estuda). Mas, no texto, sao entidades vagas, definidas na primeira pessoa do plural. Isso garante anonimato, o que sugere que a Natureza se oferece a qualquer um. Nao é que "Joao viu X", é que "vê-se X". Nao é que "Pedro e Paulo notaram que x", mas "notamos que x". E assim por diante. Existem autores dentro do texto que apresentam o mundo no texto a um leitor no texto. Se o leitor se identifica com toda essa cenografia (staging foi traduzido aqui por "encenaçao", que nao é a melhor soluçao, pois a palavra tem uma ressonância de ‘enganaçào’ e esse absolutamente nao é o caso; ninguém está conscientemente enganando ninguém), entao o argumento está certo. O artigo científico é justamente a peça literária em que ocorre esse tipo de embate.

Tàtica 3: Captaçâo

Das très táticas apresentadas, é a mais fugidia. Digamos apenas que se trata de exercer algum controle sobre o fluxo de texto. O leitor deve se sentir livre para discordar (para nao se sentir acuado por um pseudoargumento), mas nao livre o suficiente para fugir do texto. Para que isso aconteça, é preciso que o autor cerque todas as saídas. Assim, o leitor terá alguma liberdade, mas dentro de um espaço muito bem delimitado. Isso reforça a convicçao que a leitura pode suscitar. Se o controle se der muito perto do leitor (se a pista por onde ele corre for muito estreita) e pode sair convencido, mas com a sensaçao de que foi forçado à conclusao. Se a pista for larga, sairá convencido e com a sensaçao de que, apesar das muitas alternativas, aquela a que chegou é mesmo a melhor.

Nesse ponto (p. 98), Latour defende um holismo forte:

"Quando esse resultado [o leitor deslizar do inicio ao fim do texto sem dúvidas] é atingido —o que é rarissimo— diz-se que o texto é lógico. Assim como os adjetivos científico e técnico, parece que o adjetivo lógico muitas vezes indica um tipo de literatura diferente da ilógica, escrita por pessoas de mentalidade diferente, que seguem métodos diferentes ou padröes mais rigorosos. Mas nao há nenhuma distinçao absoluta entre textos lógicos e ilógicos; há toda uma gama de matizes que depende tanto do leitor como do autor".

Neste ponto, citei para os alunos Quine e sua "máxima da mutilaçao minima". Vejo um dragao najanela. Concluo que minha vista está ruim, ou que existem dragöes, ou que é uma piada de alguém que está armando contra mim, ou que existem outras dimensöes que interferem com esta e por alguma passagem vèm dragöes? Da resposta dependerá o quanto vou mexer na rede epistêmica. Posso apenas pôr em dúvida uma afirmaçao periférica ou posso ir indo mais para o centro: posso passar a duvidar da biologia, da fisica e, no limite, da lógica. Tudo depende de o quanto estou disposto a sacrificar. E essa máxima quineana que garante a posiçao privilegiada da lógica. Ela é inquestionável (ou quase) porque questioná-la teria um custo muito elevado para toda a rede.

Nessa altura, Latour chega à sua SEGUNDA REGRA METODOLÓGICA (p. 99):

"Nao devemos procurar as qualidades intrínsecas de qualquer afirmaçao, mas sim todas as transformaçôes por que ela passa mais tarde em maos alheias".

Na conclusao do capitulo, o autor fala das très alternativas possiveis diante de um texto científico: desistência, adesao ou averiguaçao.

Na primeira, o texto será abandonado.

Na segunda, paradoxalmente, também, pois o conhecimento que aporta será incorporado em instrumentos, no contexto.

Na terceira, será necessário enfrentar o autor em outro campo: na brenha de referências ou no laboratório. E isso o que enseja a continuaçao deste livro.

Antes de finalizar, Latour comenta a respeito da retórica científica que eia difere da antiga (ou, daquela que com menos dificuldade chamamos "retórica",já que o termo normalmente nao é usado no contexto científico, salvo pejorativamente) por usar ainda mais aliados externos, por mobilizar em um só ponto muito mais recursos que outras retóricas o fazem (p. 102).

Dado o gosto do autor por causar choques, afirma, no fim deste capítulo, que a literatura científica é diferente do comum nao por ser mais intelectual e, portanto, menos social. Mas por ser paroxisticamente social. Nenhuma outra é tao enredada, nenhuma mobiliza tantos atores (semióticos ou aparentemente nao, como "a Natureza"). "A distinçao entre a literatura técnica e o restante nao é obra de fronteiras naturais; trata-se de fronteiras criadas pela desproporcional quantidade de elos, recursos e aliados disponíveis. E tao difícil ler e analisar essa literatura nao porque ela escape a todos os elos sociais normais, mas porque ela é mais social do que os vínculos sociais considerados normais". (p. 104)

Capítulo 2: Laboratorios

Parte A: Dos textos ás coisas: mostrando as cartas

Se o discordante continuar duvidando do cientista, o jeito é ir ao laboratório deste e checar os resultados. Latour monta o caso fictício de um discordante que vai ao laboratório em que sao feitas experiencias que visam à purificaçao de uma endorfina.

Para testar a presença dessa droga produzida pelo cérebro, os cientistas, primeiro, fazem extratos de encéfalo de camundongos. Depois, separam esses extratos em colunas de sephadex. Cada fraçao é guardada em um frasco e testada em um aparelho.

O tal aparelho consiste em uma cuba com uma tira de íleo de cobaia presa a dois eletrodos. Como esse músculo tem um padrao de contraçao muito regular, é fácil medir o efeito de qualquer coisa sobre ele, bastando observar como a agulha do fisiógrafo mostra as variaçoes a partir da oscilaçao normal.

A questao agora é: o discordante nao passou do texto à natureza (quando foi apresentado, ainda no texto, ao gráfico) e, com a visita ao laboratòrio, da representaçâo direta da natureza (o gráfico) à natureza mesmo. Ele sò passou de uma malha de citaçoes e figuras a uma outra malha de equipamentos que produzem inscriçoes que precisam ser interpretadas. "O gráfico, que era o elemento mais concreto e visual do texto, agora é o elemento mais abstrato e textual num atordoante arsenal de equipamentos" (p. 110).

O caso em questao traz para consideraçao muitos tópicos:

- experimento é sempre um complexo
- cada elo desse complexo é uma caixa preta
- bom funcionamento do complexo é em parte aferido pelo pròprio resultado
- tudo o que é produzido é uma inscriçao
- essa inscriçao precisa falar por um porta-voz
- esse porta-voz é o cientista

O exemplo enseja a Latour definir os pontos essenciais do capítulo: instrumentos e porta- vozes.

Instrumento é um complexo cujas partes nao mais estao em discussao e que produz inscriçoes. Assim, no exemplo, o fisiógrafo nao está em discussao (diríamos que, da mesma forma como acontece com os papers científicos estabilizados, passou para o contexto), mas o equipamento todo (que o inclui) está.

Porta-voz é quem fala por quem nao pode falar.

Diante da natureza, supostamente presente no laboratòrio, restam ao discordante duas alternativas:

- desmontar o instrumento
- enfraquecer a relaçao entre o porta-voz e a inscriçao

Latour exemplifica o comportamento e a dinámica do porta-voz com o exemplo de um representante sindical que vai à direçao de uma fábrica com um pedido de aumento. O dono tentará averiguar qual o grau em que esse porta-voz realmente fala pelos operários, fazendo várias provas de força. O mesmo é feito entre o discordante e o cientista, o que leva Latour a falar que nao existe, na pràtica, muita diferença entre pessoas e coisas: sempre sao necessários representantes para os que nao podem falar, sejam eles objetos, animais, tiras de íleo ou seres humanos.

Assim, o porta-voz nao diferencia pessoas de coisas e isso é o que leva Latour, mais para frente, em falar da necessidade de fazer alianças com tudo, tudo mesmo, para garantir o sucesso de uma empreitada científica. E preciso, por translaçao de interesses, trazer pessoas para seu lado. Mas é preciso também trazer instrumentos, fazer com que eles pareçam ser representados por voce, mesmo que nao sejam.

Nesta altura, aproveitei para mostrar a experiencia de Raymond Davis com neutrinos solares, à qual Latour apenas alude na página 114. Ela é interessante porque mostra um caso em que o sucesso do instrumento está atrelado diretamente ao resultado, numa circularidade difícil de escapar. Além disso, mostra que os cientistas adaptam teorías a instrumentos, a fim de obter resultados ditos, depois, corretos. A experiencia é explorada no capítulo 7 de ‘The Golem’ traduzido no Brasil pela editora Unesp como “Golem, o que voce deveria saber sobre ciencia, 2003). Outra coisa importante da experiencia é como os cientistas mudam de expectativa conforme a fase da pesquisa. Collins e Pinch mostram um gràfico no qual, conforme os cientistas iam arranjando financiamento, a expectativa d encontrar neutrinos ia diminuindo. Só que, se eles dessem tais expectativas menores no inicio, nao teriam financiamento para começar a trabalhar. Má fé? Nao. E apenas um padrao que, aliás, mais uma vez coloca a atividade científica no mesmo patamar de qualquer outra atividade humana.

"Dependendo das provas de força, os porta-vozes se convertem em indivíduos subjetivos ou em representantes objetivos" (p. 129). Essa passagem enseja mais um exemplo de como modalidades apostas ao discurso dos porta-vozes determinam o conteúdo dos experimentos. Objetividade e subjetividade (dois estados que diferenciaríamos essencialmente) sao apenas resultado de uma disputa resolvida em termos puramente extensionais.

Neste capítulo, aparecem tópicos tradicionais de filosofia da ciencia como, por exemplo, "experimento crucial". Mas Latour evita o nome e prefere uma abordagem mais histórica.

O motivo é o método latouriano, exposto em suas regras metodológicas. Ele é absolutamente extensional. Nao vem ao caso se os cientistas usam ou nao um método, nao vem ao caso se um instrumento é um complexo ou algo mais simples. Se os resultados sao aceitos, entao isso resolve a questao. Nao existe nada nos resultados ou no método de obtençao que force a aceitaçao.

Outra coisa importante: isso funciona, ou seja, a ciencia natural acerta (pelo menos no sentido de aumentar a longo prazo sua capacidade preditiva), o que exige que se procure uma definiçao de "razao" que nao faça mençao a lógica, regras etc.

Isso também é bem interessante e difícil: essa questao do "longo prazo". A longo prazo, a capacidade preditiva aumenta. Mas isso se dà por acréscimo de lances de curto prazo nos quais essa capacidade, muitas vezes, diminuì. Bom tópico de pesquisa.

Parte B: Construindo contralaboratórios

No inicio desta parte, Latour resume seu percurso até aqui:

1. o que està por tràs das alegaçoes? Textos.
2. por tràs dos textos? Mais textos.
3. por tràs dos artigos que suportam os textos? Mais artigos e gráficos.
4. por tràs das inscriçoes produzidas mostradas nos gràficos? Instrumentos e seus porta- vozes.
5. por tràs dos porta-vozes? Provas de força que avaliam a resistencia do elo entre representados e representante.

Nessa altura, quase todos os discordantesjà desistiram. Mas, se o exemplo ficticio quiser ir adiante, o próximo passo para o discordante seria a montagem de um contralaboratório. Porém, este deve fazer mais que seu concorrente, pois deve poder nao só mostrar que este està errado, como mostrar uma saida.

O contralaboratório é o ùltimo ponto do que poderíamos chamar "dúvida metodológica latouriana". E totalmente ficticia, pois nao reflete nenhum caso histórico e existe apenas para mostrar o que se posta atràs dos textos apresentados pelos cientistas. Sem ela, ou teríamos parado muito antes com nossas inquiriçoes (como o fazem os dentistas praticantes) ou estaríamos buscando o fazer científico em alguma característica essencial. A dúvida serve para nos levar até o contralaboratório e, entao, pára. Terminada essa parte, podemos dizer que Latour fecha a parte crítica de "Ciencia em Açao" e começa sua parte substantiva, em "Translaçoes".

Neste capítulo, Latour tem de fato pouco a dizer. Dá muitos exemplos, sempre de casos históricos em que houve disputa (Guillemin contra Schally, Freeman contra Mead, Pasteur contra Pouchet) e mostra que a tática do cientista discordante segue um padräo:

crítica ao competidor

desmontagem do argumento do competidor montagem do contralaboratório

novos resultados que cumprem duas funçoes (afirmam-se e desacreditam o competidor)

Nessa empreitada, o cientista aliciará instrumentos, técnicos outros cientistas e mesmo a natureza. Nessa altura, Latour fala em "fato novo", como sendo algo que resiste a provas, que nao tem nome e cujo nome deriva dessas provas. Laboratórios sao como ginásios olímpicos, em que testes sao criados e quem os supera é admitido. Só que a via de conhecimento das coisas é o próprio teste (diferentemente de um atleta, que conheço independentemente de seu performance). Daí que as coisas, no início de sua existencia, recebem o nome dos testes por que passaram. Depois, essa lista de testes ganha um nome sintético. Como os testes podem ser replicados, fica mais fácil dar um nome só para a coisa nova e como nomes pressupoem a existencia de coisas, elas passam a existir. Assim, nao é que a natureza obrigue o cientista a fechar controvérsias. A natureza é o último estágio da controvérsia, é seu resultado.

As duas faces de Jano dirao, entao, coisas diferentes. No final da controvérsia, teremos: Face 1: A natureza é a causa que permitiu a resoluçao das controvérsias.

Face 2: A natureza será a consequencia da resoluçao.

Dessa digressäo, Latour tira sua terceira regra metodológica: urna vez que a resoluçâo de urna controvèrsia é a causa da representaçao da natureza, nunca poderemos usar o resultado —a natureza— para explicar como e por que uma controvèrsia foi resolvida (p. 164).

No último parágrafo, Latour comenta sobre a clivagem entre relativismo e realismo. Como ele è absolutamente extensional e segue, por regra, os cientistas, age como eles: è realista no que diz respeito ás partes assentadas e relativista com respeito ás controversas. Ser relativista com respeito a tudo seria bobo e ser realista com respeito ao controverso, impossível. E por que ele nao poderia ser relativista, mantendo a dúvida acerca das bases da ciencia e da tecnologia? Porque o custo è alto demais para o discordante. Se è alto demais para os cientistas, que dirá para os sociólogos e antropólogos. Logo, se eles pararam de discordar, nós tambèm.

E nessas pequenas coisas que está a precisao de Latour. Ele è rigorosamente extensional, nao se apoia em quase nada, evita qualquer recurso a qualidades essenciais das coisas, á natureza, ao mètodo. Quando diz que a discussao cessa, nao diz que isso acontece porque algum principio está sendo seguido, porque algo especial aconteceu. Cessa porque os custos sao elevados e porque os atoresjá pararam e, assim, nao cabe continuar o espetáculo. Isso o deixa á vontade com o relativismo: ele o será só se seus informantes o forem. E nem assim: ele só anotará seus passos.

PARTE 2: DOS PONTOS FRACOS AOS FORTES Capítulo 3: Máquinas As incertezas do construtor de fatos Parte A: Translaçâo de intéressés

Nao está ainda muito claro a esta altura por que o capítulo se chama "Máquinas".

Como dito antes, começa aqui a parte substantiva de Latour. Embora ele "siga cientistas e engenheiros sociedade afora", o fato è que, atè aqui, seguiu apenas cientistas e engenheiros ficticios, idealizados, seres cuja existencia foi conjurada apenas para fins didáticos.

Ninguém duvida de toda a bibliografía de um artigo ou perscruta todos os pontos da rede de citaçoes ou constrói um contralaboratório. As pessoas agem criando alianças. E a análise dessas alianças e de seus resultados que começa agora.

A questao para Latour aqui é explicar como os cientistas (e tecnólogos) agem de fato.

Até agora, examinamos a caminhada implicada pela dúvida metodológica. Se o sujeito discorda de um artigo,

ou o questiona rapidamente e concorda

ou continua discordando e parte para o exame de toda a sua bibliografia ou continua e monta um contralaboratório

O problema é que ciencia e técnicaNUNCA sao assim. Os recursos sao escassos e os cientistas devem usar os meios à disposiçao. Portanto, precisam aliciar outros cientistas, outros grupos e outros instrumentos, quejá estao na comunidade, fazendo-os funcionar para seu fim.

Só que esse aliciamento leva o cientista a duas demandas que se chocam:

1. deve alistar outras pessoas para que elas participem da construçao do fato;
2. deve controlar o comportamento delas, de forma a tornar previsíveis suas açoes.

Para cumprir esse duplo programa, os cientistas lançam mao de táticas de aliciamento, que Latour chama coletivamente de translaçao de interesses.

Definiçao: "Chamarei de translaçao a interpretaçao dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam".

E importante frisar que tais translaçoes nao precisam ser conscientes, pois os atores nao agem cinicamente (pelo menos nao na maior parte das vezes).

TRANSLAÇOES 1. eu quero o que voce quer

2. eu quero, por que voce também nao quer?

3. se voce se desviasse um pouquinho...

4. remanejando interesses e objetivos

a. deslocar objetivos
b. inventar novos objetivos
c. inventar novos grupos
d. tornar invisível o desvio
e. vencer as provas de atribuiçao

5. tornar-se indispensável

(1) é o que ele chama "estratégia da carona" (pega-se carona em quem tem mais poder e deixamos que ele transforme nossas afirmaçoes, na esperança de dar-lhes mais visibilidade). O problema é que nossas afirmaçoes podem virar algo completamente diferente do pensado no inicio. Logo, é uma tática insegura para quem tem pouco poder.
(2) é o contràrio de (1): as pessoas pegam carona conosco. Mas elas só fazem isso se perceberem que seu caminho está completamente bloqueado.
(3) para essa tática funcionar, é preciso que:

o caminho principal esteja claramente bloqueado; o novo desvio esteja bem sinalizado o desvio pareça pequeno

O problema dessa estratégia é que se um grupo puder avaliar bem a extensao do desvio, entao por que seguiría voce? Eles fariam tudo sozinhos. Além disso, como tudo estava na mesa, fica difícil, no final, dizer quem foi o responsável pelo desvio: voce ou eles mesmos? Portanto, uma tática mais poderosa deve ser posta em prática.

(4) supera as desvantagens de (3):

a. a extensao do desvio deve ser de avaliaçao impossível.
b. deve ser possível alistar outros mesmo que o caminho destes nao esteja bloqueado (afinal, se voce só puder alistar quem chegou a um impasse, o número de aliciáveis se torna muito pequeño)
c. deve-se tomar cuidado para evitar definir claramente quem é alistado e quem alista (motivaçao, independencia das equipes, possibilidade de méritos individuais)
d. no fim de contas, os construtores devem aparecer como a única força propulsora.

No fim de contas, nao se trata bem de cinco translaçoes. Pode-se dizer que uma translaçao bem-sucedida é uma mistura de todas. Voce toma carona (translaçao 1), mas, em dado momento, ou em dado setor da pesquisa, mostra-se indispensável (translaçao 5).

Assim, é lícito dizer que tudo o que queremos é (5), que nos garante preeminencia, liberdade e prioridade e usamos as táticas de (4) para consegui-la. (1), (2) e (3) sao só distinçoes analíticas.

Parte B: Mantendo na linha os grupos interessados

Essa parte é fortemente calcada em exemplos históricos, especialmente o caso Diesel x MAN. A questao colocada pelo autor é: como manter as pessoas fazendo o que voce quer? Criando alianças e fazendo compromissos. O motor de Diesel deveria funcionar com qualquer combustível. Nao dá? Entao funciona com um combustível em particular. Enfim, o projeto vai sendo reformado, de forma a atender a todos. Nisso, novas alianças sao feitas. Latour nao diferencia aliciar pessoas e aliciar coisas. O que é razoável, dentro do modelo. Se a realidade é forjada no laboratòrio, se as "coisas" sao listas de provas, entao as coisas sao aquilo para o que criamos provas. A coisa x faz isso? Talvez faça, mas como nunca pensamos no assunto, que diferença faz? Assim, aliciar coisas é defini-las e a definiçao é sempre parcial, pois depende das provas a que as submetemos.

Outra coisa importante, seguindo a premissa de que alegaçoes só tomam sentido nas maos de terceiros, é que as caixas pretas também só tomam sentido nas maos de terceirosjá que sao feixes de alegaçoes cristalizados em objetos. Se a caixa puder ser aberta, se puder ser modificada, entao nossas alegaçoes (e nossa prioridade, nossos premios, nossas patentes) correm perigo. Portanto, é fundamental desenvolver o que Latour chama "máquinas": caixas pretas que, sem serem tocadas, incorporam-se ao ambiente. Mas, para que isso aconteça, é preciso desenvolver, ao lado das caixas, redes. Eastman, para tornar a Kodak urna caixa prêta, precisou desenvolver redes de lojas de suporte. A MAN, para tomar о motor Diesel algo confiável e usável por qualquer um, precisou desenvolver redes de suporte. Por isso, quanto mais preta a caixa, maior a rede que a sustenta. O que leva à ideia de que todos os usuários estâo implicados na manutençao da caixa (da alegaçao, da teoria etc.). Esse é o modelo que Latour chama de "modelo de translaçao".

Segundo o autor, o que é mantido para a sociedade é o "modelo de difusao". Urnas poucas pessoas descobrem, umas poucas desenvolvem, todos usam passivamente. Quando uma ideia nao se difunde, culpa-se a sociedade. Quando se difunde, glorifica-se o descobridor.

Só que o estudo meticuloso da história mostra que a caixa preta raramente é o que o descobridor tinha em mente no inicio, sendo na verdade resultado de n processos de translaçao. Entao, o modelo de difusao exige que se atribua ao descobridor praticamente toda a obra. Como isso nao é possivel, afirma-se que tudo estava dado "em germe". Além disso, o modelo é assimétrico, pois a tal sociedade só é chamada ao cenário para explicar falhas no progresso de uma caixa preta (ou de candidato a caixa preta).

Latour defende a ideia de que a sociedade tal como dada no modelo de difusao, um meio permeável à inovaçao, nao existe. E resultado do modelo. O que existe é uma sociedade que se transforma e usa (ou nao) certas máquinas. Usamos automóveis nao porque eles sao uma grande ideia e que, portanto, foi aceita. Usamo-los porque os fizemos, todos (claro que em graus diferentes). A sociedade que usa carros é resultado de um processo de translaçoes. O objeto técnico fica estável exatamente quando seu público fica estável. Os objetos podem ser estudados via desenvolvimentos técnicos (tecnograma) e as pessoas via um diagrama de associaçoes (sociograma). Eles sao simétricos e chegam à estabilidade ao mesmo tempo. A sociedade que "aceita" o objeto técnico é outra, diferente daquela que o desconhecia. E por isso que ele se difunde, porque nao foi "aceito", mas porque foi moldadojunto com a sociedade.

Pergunta: será que o que chamamos "massa" (as massas silenciosas de Baudrillard) pode ser incluido nesse raciocinio? Creio que nao. Talvez possamos dizer que a sociedade latouriana é apenas a que ainda está implicada no processo produtivo.

Essas consideraçoes levam o autor à sua Quarta Regra Metodológica, que é apenas a terceira com "sociedade" no lugar de "natureza". A sociedade e resultado do fim de uma controvérsia e, assim, nao pode ser usada para explicar por que uma determinada controvèrsia chegou ao fim e a natureza (e a sociedade) se estabilizou.

Capítulo 4: Quando os de dentro saem (Insiders out)

Parte A: Despertar o interesse dos outros pelos laboratorios

Primeiro, assinalo o que acredito ser uma brincadeira embutida no título do capítulo. Este começa com duas descriçoes de casos em que a atividade nao existe, seja porque nao começou, seja porque está em decadencia. Depois, evoluì para o estudo de um caso de atividade a pleno vapor. Assim, "insiders out" poderia ser interpretado como "sem insiders", quando a atividade ainda nao existe, e como "quando os de dentro saem", quando a atividade está a toda e só está assim porque aqueles que consideraríamos "de dentro" saem, gastam boa parte de suas energías na criaçao de alianças. A traduçao para o portugués nao salva esse aspecto do título.

O capítulo apresenta tres casos, dois ficticios, mas emblemáticos, isto è, costuras de vários casos reais, e um caso real mesmo. A ideia è mostrar que, coerente com o que vem sendo dito atè aqui, o número de implicados no processo de desenvolvimento tecnocientífico è muito maior que aquele que o modelo de difusao nos leva a acreditar.

Nesse modelo, uns poucos tém todas as grandes ideias, que sao posteriormente difundidas na sociedade. Se esta as aceita, è porque eram boas na origem. Se nao, è porque a sociedade è conservadora. A tese de Latour è que, com as translaçoes, as ideias iniciais sao o que sao, apenas pontos de partida, e o resultado è tanto um objeto (ou uma teoria) e a sociedade que o aceita.

Mas essa dinàmica só è bem-sucedida se os cientistas dedicarem parte do tempo à atividade de bancada e parte do tempo às atividades de translaçao, implicando mais pessoas e coisas na produçao de bens ou de fatos.

O "difusionistas" (Latour nao usa esse termo, mas tudo bem usá-lo aqui) explicam essa dinàmica na linha do "existem cientistas de verdade e administradores do processo, que sujam as maos com os financiadores; nao existe ciencia sem esse financiamento, mas as instàncias nao se confundem".

Latour examina no capítulo a história da fundaçao da geologia, com Charles Lyell (1797­1875), a história de um cientista/tecnólogo brasileiro, Joao da Silva e o caso do "chefe", um cientista bem-sucedido.

No caso de Lyell, a geologia nao existe como disciplina. Assim, ele tem de gastar muita energia fora de seu laboratòrio (que nem existe), em tarefas tais como:

- atrair financiadores
- atrair académicos
- atrair leigos, que colecionam espécimes e, ao mesmo tempo
- enxotar financiadores, para que nao interfiram demais no trabalho
- enxotar académicos, para que a nascente especialidade possa se diferenciar do quejá existe
- enxotar leigos, para que nao façam nada além de coletar material para estudos mais profissionais

Complicado. Assim, quando a disciplina nao existe, está-se quase todo tempo FORA do laboratório.

O caso de Joao da Cruz, de Sao Paulo, é diferente. Ele foi para o exterior, estudou, interessou, quando de sua volta, governo e militares na construçao de um computador brasileiro, conseguiu financiamento para comprar material etc. Mas, depois, a política mudou e Joao foi sendo abandonado. Quanto ao mercado, todos preferem, com o relaxamento de políticas de restriçao, comprar fora do país chips mais eficientes e baratos. Assim, ninguém de fora passa por seu laboratòrio e ele nao tem de ir a lugar algum para negociar, pois sabe que nada conseguirá.

Quanto à vida universitària, sua falta de perspectiva de acordos com forças produtivas leva a uma defasagem do laboratòrio. Ele continua a fazer pesquisa ("académica", no pior sentido da palavra), mas já nao consegue publicar nas revistas de ponta.

Em breve, passa a dar aulas em escolas sem expressâo científica, passa a escrever para jomáis e revistas, em seçôes dedicadas à divulgaçao de ciencia e tem de optar entre desaparecer do mundo tecnocientífico ou migrar para um centro maior, para integrar grupos de outros.

Ou seja, na decadencia, o cientista está o tempo todo DENTRO do laboratorio.

O caso do "chefe" é exposto na forma de um diàrio: o antropólogo da ciencia e da tecnologia segue um chefe de laboratorio e o encontra em todas as situaçoes: com representantes de governos, com industriais, com técnicos, com grupos de pressao, com jornalistas, com editores, com conselheiros de agencias e, muito eventualmente, com os cientistas da bancada.

Quem faz ciencia? O cientista preso à bancada ou o chefe? Essa é uma questao importante quando se resolve que o negocio é "seguir cientistas e engenheiros sociedade afora". Se seguirmos os cientistas de bancada, teremos uma visao de ciencia muito diferente da que obteríamos se seguíssemos os chefes. Temos de seguir ambos.

Mas entao poderiam vir críticos e dizer que o da bancada faz ciencia e o chefe apenas garante condiçôes materiais para tanto, além de fornecer alguma distante orientaçao formal. Mas isso nao é verdade do ponto de vista do modelo de translaçao, em que o número de implicados na construçao de fatos se amplia. Como o cientista de bancada faz ciencia? Com a ajuda de candidatos a PhD, com a publicaçao de resultados, com a interlocuçao densa com seus pares. Nao tem sentido dizer que, num ponto, produz-se ciencia e que outra atividade é a interlocuçao, a publicaçao, o trabalho braçal dividido em equipes extensas, com chefes, subchefes e aspirantes. Tudojunto é ciencia. Sem publicaçao, por exemplo, um trabalho é nada, é apenas reflexao pessoal. Assim, o cientista da bancada faz ciencia porque o chefe está no conselho de revistas, garantindo a publicaçao de resultados, está nas agencias, criando espaço para sua especialidade, está nas indústrias, garantindo que os instrumentos cheguem mais adaptados ao laboratorio etc. etc. etc.

E claro que esse aumento no número de implicados no processo pode levar à paralisia da análise. Se todos estao implicados, entao todos tem de ser seguidos. Como escapar disso? Como fazer para seguir o chefe, mas nao ojornalista a quem o chefe dá uma entrevista, e que terá sem dúvida um papel (pequeño ou grande, pouco importa) no processo de manutençâo do laboratòrio? A saida de Latour é (página 262):

"Tenho sugerido implicitamente aquilo que seria o esqueleto de uma anatomia diferente da tecnociència, e agora direi como é ele: nele, a divisao interior/exterior é resultado provisòrio de uma relaçao inversa entre recrutamento ’externo’ de interesses —o sociograma— e o recrutamento ’interno’ de novos aliados —o tecnograma. A cada passo do caminho, altera-se a constituiçao daquilo que é ’interno’ e daquilo que é ’externo’."

Enfim, existe, finalmente, para Latour, o "dentro" e o "fora". Sem isso,já dava para ver, nao daria para trabalhar. Afinal, se ele pretende seguir as pessoas e ver como elas agem, tem de levar em conta o que elas veem. E elas veem "dentro" e "fora". De nada adiantaria dizer algo na linha "nòs, os antropólogos da ciència, vemos o certo, e essa divisao é ficticia".

Näo, pois nao pode ser descartado como ficçao aquilo que vocè efetivamente encontra na sociedade. O que é encontrado tem de ser explicado. (Afinal, se pudéssemos descartar aquilo que, segundo nossa teoria, é ficçao, por que entao teriamos nos dado o trabalho de seguir as pessoas?) Enfim, usamos um critério frouxo, baseado no bom senso. O chefe sabe o que o cientista da bancada faz e compartilha com ele alguns objetivos. Entao, é cientista e deve ser seguido. Ele se encontra com o industrial, que dá recursos a troco de algumas alteraçoes de projeto. Aceitas as alteraçoes, vemos quem as implemente. E o chefe e sua equipe. Entao, continuamos a segui-los. E o industrial? Näo será seguido, pois nao é incorporado ao processo, nesse momento. Mas o projeto deve, nalguma altura, ser apresentado ao industrial. Entao, devemos segui-lo. O industrial o aprova? Sò depois de testá-lojunto apotenciais consumidores. Entao, seguimos o industrial e esses consumidores-pilotos. Estes aprovam a coisa e orientam o industrial? Se sim, deixamos de segui-los, poisjá cumpriram sua parte. Apenas registramos que, em alguma altura, entraram no sociograma. Mas cada um desses consumidores só foi convocado porque tinha tais e tais características e relaçoes. Algumas dizem respeito ao projeto (formaçao, conhecimento etc.) e outras, nao (laços familiares, gostos em outras áreas etc.). Entao, nao precisamos seguir, digamos, a namorada do consumidor-piloto que fez parte do grupo que orientou o industrial que exigiu do chefe, que ordenou ao da bancada. O problema é como podemos saber de antemao quem devemos seguir e quem nao. Só com base em um conhecimento de o que é e de o que nao é importante para um projeto. Mas se sabemos isso de antemao, sabemos mais do que aquilo que nossa pesquisa simples (de apenas seguir) sugere. E o que é esse "isso a mais"? Temos, entao, de nos basear em alguém. O da bancada ou o chefe têm uma ideia de quem deve ser aliciado. Seguimos as pessoas dessa lista. Se o chefe as descarta, fazemos o mesmo. Mas, como temos de ter um ponto de partida, precisamos eleger alguém. E se elegêssemos anamorada do consumidor-piloto número 23? Atese (forte) de Latour é que chegariamos ao mesmo resultado. Acabaríamos achando a rede e revelando alguns pontos de passagem obrigatórios, que se concentram fisicamente no chefe. Essa tese meparece empírica e deveria ser testada. Enfim, a tese é: podemos começar de qualquer ponto e usar como orientaçao um problema. Por exemplo: eficiência dos motores Diesel. Podemos começar por Diesel ou pelas faxineiras de uma oficina mecánica no Brasil. Chegaremos aos mesmos pontos, que sao os pontos de passagem das translaçoes. Mas é bom frisar que esses pontos e essas translaçoes sao provisórios. Se perdermos isso de vista, teremos de dizer, de saída, que existe Natureza estável e problemas comuns que essa Natureza propoe a todos.

Se fizermos a jornada em um momento, acharemos um ponto nodal. Se fizermos noutro momento, acharemos (poderemos achar) outro.

Latour, em seguida, esboça um ciclo que mostra o caminho do cientista de dentro para fora. Esse ciclo tem cinco etapas:

dinheiro

força de trabalho instrumentos objetos argumentos inovaçao

О dentista passa por ele vàrias vezes, cada vez em nivel mais elevado:

Abbildung in dieser Leseprobe nicht enthalten

Latour concluí que seria impossivel traçar um limite do quadro, no qual estariam do lado de fora o contexto e do lado de dentro o conteúdo técnico. Essas fronteiras sao móveis e se retroalimentam.

Isso leva ao que John Ziman definia como o "efeito Mateus": mais é dado a quem mais tem.

Parte B: Contando aliados e recursos

Esta parte do livro é a mais dificil. Latourjà mostrou de forma convincente que só uma visao distorcida das atividades tecnocientificas leva ao modelo de difusao, no qual poucos fazem para muitos. Isso ficou, senao provado, bem documentado, que quando muitos "aceitam" a dádiva dos poucos é porque os muitos participaram e nao estao tao assim "de fora" como o modelo de difusao quer que pareçam estar. Até ai, tudo bem.

Mas ai vem Latour com uma série de números. Se fossem apenas ilustraçao, sem problemas. Mas nao, o autor os usa para provar que é impossivel atribuir a poucos cientistas os equipamentos e teorias que sao compartilhados por muitos. E por que isso? Porque os poucos sao "muito poucos". Parece que falta algo ao argumento. Pois, se sao muito poucos os cientistas para que se lhes impute o poder de criar teorias que todos aceitam, quanto seria o número aceitàvel? Latour nao sabe. Frases como "Dois milhöes e meio de cientistas e engenheiros nao conseguem fazer 700 milhöes de pessoas acreditarem em todos os fatos da tecnociéncia e aceitá-los" (p. 270) ou "O número de grandes nomes da ciencia agraciados pelo prestigio, simplesmente é pequeno demais para explicar os gigantescos efeitos que lhes sao imputados" (p. 272) parecem pouco convincentes. No capitulo seguinte, Latour mostrará que o grosso da humanidade está fora da rede de cientistas e engenheiros e que sao por eles acusados de irracionais. Ora, se o grosso da humanidade é irracional (mais uma consequéncia do modelo de difusao), entao nao é verdade que poucos tenham poder sobre muitos. Eles tém poder sobre os poucos que contam, o que é outra coisa. Os muitos sao deixados de fora e, na maior parte das atividades que constituem suas vidas, deixam os engenheiros e cientistas de fora também. Ai parece que existe mais uma contradiçao.

Uma observaçao:

A página 313,o autor fala da controvérsia entre Descartes e Newton, com o primeiro afirmando que açao a distância é equivalente a bruxaria. Talvez, Latour seja um cartesiano. Estamos vendo, quando olhamos para o pequeno número de cientistas e de engenheiros que controla uma grande sociedade, algum tipo de força, de açao a distância, que Latour quer descartar. Nao existem para o autor centros de saber que difundem conhecimento, o que seria um paralelo social da força da gravidade. Tem de existir outra coisa. Essa outra coisa virá mais adiante, quando Latour falar em "redes".

Quando Latour abandona os números, volta para suas regras metodológicas e, entao para os eixos.

Uma vez que fica mostrado pelos números que o grosso do orçamento de pesquisa e desenvolvimento no Primeiro Mundo é destinado a pesquisa militar, ficamos sabendo que os cientistas que alistam sao na verdade empregados alistados pelo aparato militar, ainda que muito indiretamente.

A atividade de alistamento (mecanismo primário) permanece invisivel, mas a atribuiçao de responsabilidade (mecanismo secundário, e talvez mais tardio) é mais visivel e é esse mecanismo que gera a "ciencia e tecnologia" e, com ela, seus protagonistas, os poucos que moveram os muitos.

A dupla face de Jano aparece novamente, com duas falas:

FACE ESQUERDA (CIENCIA ACABADA): A ciencia e tecnologia é causa da execuçao de projetos.

FACE DIREITA (CIENCIA EM AÇÂO): Executados os projetos, ciencia e tecnologia aparecem como força propulsora por trás deles.

Latour aqui dá sua definiçao de TECNOCIENCIA: sao todos os elementos amarrados ao conteúdo científico, por mais sujos, insólitos ou estranhos que pareçam e CIENCIA E TECNOLOGIA é o que sobra da tecnociencia depois que foram resolvidos todos os julgamentos de responsabilidade. Ou seja, primeiro, tudo é tecnociencia. Quando ahistória é recontada, deixamos de lado tudo o que nas redes foi alistado e que nao conta para atribuiçao de prestigio. O que sobra é ciencia e tecnologia e é nessa esfera que acontecem as atribuiçôes.

Latour chama a atençao para o perigo de, naojulgando a ciencia como algo feito pelos cientistas, entao estaremos julgando-a como algo feito por militares, banqueiros etc.? Ou seja, abrimos o flanco para os "estudos sociais da ciencia". Nao,já que desconfiamos simetricamente de todas as atribuiçôes. Seguimos a

QUINTA REGRA METODOLÓGICA: seremos tao indefinidos quanto os atores que seguimos quanto a de que é feita a tecnociencia.

PARTE 3: DAS PEQUEÑAS AS GRANDES REDES

Capítulo 5: Tribunais da razäo

Parte A: Os julgamentos de racionalidade

Só uma observaçao antes de começar esta parte: ás vezes é difícil entender a posiçao relativista. A simetría que Latour propôe (nao que eu ache que seus argumentos, nesse ponto, sejam lá muito cogentes) é difícil de pegar. E nao só pelos alunos.

Saiu no Jornal de Resenhas da FSP um texto sobre "Ciencia em Açao". O interessante do texto de Renan Freitas é que ele nao gosta do Latour com base em que este teria perdido o ponto essencial da atividade científica. Ao dedicar muito tempo a discutir como os cientistas selam controvérsias (para Latour, aumentando o valor da aposta, ou seja, tomando a vida do discordante cada vez mais difícil e cara), Latour teria, para Freitas, se esquecido de dizer o que as pessoas aprendem das controvérsias, que seria o assunto realmente importante, o motor da evoluçao da ciencia. Só que o resenhista perde de vista que Latour nao pode, por principio, separar a atividade do cientista e da sociedade da qual faz parte da controvèrsia em questao. Dizer que é importante estudar o que as pessoas aprendem de um controvèrsia è separar cientistas de um lado e controvèrsia do outro ou, mais grave ainda, è separar a comunidade que debate da natureza, que é o assunto em pauta. Só que isso nao pode ser separado e, ainda assim, ser mantida uma equidistància relativista. A sociedade em que a controvèrsia deixa de existir è outra, diferente daquela em que a controvèrsia existia. Näo se "aprende com ela", porque nao existe "ela", de um lado, e "quem aprende", do outro. Existe uma sucessao de situaçoes e de comunidades e só podemos ver isso se estudarmos esses pontos nodais que sao as controvèrsias. Elas sao raras, diz ainda o resenhista. E verdade. O grosso da ciencia è o que Kuhn chamaría de "normal". Nem por isso devemos ver a ciencia normal (que è a ciencia fora da controvèrsia mais aguda) como o assunto determinante em estudos sobre o fazer científico. Só para completar, a resenha è aberta com a afirmaçao de que Latour está na mesma linha de Feyerabend, para quem a ciencia deve se guiar (sic) pelo principio do "vale tudo". (Como um relativista poderia dizer o que deve e o que nao deve?) Mas isso nao è verdade. Feyerabend provoca e afirma que, ao estudar a história da ciencia, mesmo pegando casos sem controvèrsia quanto à relevància do autor (ele dedica seu "Contra o Mètodo" a Galileu), constatamos que nao parecem existir regras estritas, a-históricas, usadas por todos. Parece que tudo vale. Mas só parece. Para Feyerabend, como para Latour, a ciencia, e isso è o mais surpreendente, dá certo. E claro que nao vale tudo. Mas nao sabemos dizer o que vale. O que nos causa tanta perplexidade è ver que algo vale, algo que desconhecemos. Existe uma razao pràtica cujos principios nos escapam e o estudo da atividade científica nos deixa, infelizmente, com pouco nas maos. Saímos do estudo da ciencia com duas convicçôes: "parece nao haver nenhuma regra geral" e "a coisa funciona". Só que a precariedade dessa constataçao è muito sofisticada. Para a mèdia, se regras sao postas em xeque, outras tem de ser postas em seu lugar. Se algo funciona de forma regular, deve haver regras simples que todos usam. Nao pode haver atividade sem regras. E assim por diante. Freitas, como a maioria dos críticos do relativismo, simplesmente nao entende o argumento. O argumento antirrelativista seria (1) moral: o relativismo nao instaura, só destrói; (2) interno: mesmo nada instaurando, o relativista partilha, no mínimo, de um interesse comum no tema, o quejá indica uma filiaçao (Feyerabend resolveu discutir física e nao fabricaçao de conhaque, por qué?). Mas essas duas linhas de ataque, boas ou ruins que sejam, implicam que o debatedor entenda o assunto em pauta. Mas isso raramente é o caso. Freitas, como tantos outros críticos de Kuhn ou Feyerabend ou Latour, vé as coisas estanques: existe o mundo de um lado e seus estudiosos, de outro. O positivista vé a relaçao assim e o relativista, assado. Fechadas as posiçôes, os (maus) críticos começam. Só que o relativista nao aceita a tal separaçao clara inicial.

Latour examina agora a questao de que a maioria das pessoas está fora da rede tecnocientífica e, portanto, fora desses tipos de mecanismos de convencimento e de translaçoes complicadas. Mesmo assim, viram-se. Como, "se nao há cientistas e engenheiros por perto?". Dirá um cientista: usando regras práticas, baseando-se em crenças em lugar de se basear em conhecimento. O interessante, ressalta Latour, é que o grosso da humanidade faz isso. Näo seria portanto um pouco arrogante dizer que todos sao irracionais e os poucos tecnocientistas, racionais?

Mas, aí, entra tradicionalmente a sociologia, aquela sociologia que sempre é chamada para executar o serviço inferior da filosofia da ciéncia. Quando tudo corre bem, regras estao sendo aplicadas, um método claro e distinto está sendo seguido. Quando as coisas correm menos bem, é preciso chamar o sociólogo ou antropólogo ou politicólogo ou historiador ou economista para que expliquem o desvio com relaçao à linha reta da racionalidade.

O quadro tradicional é portanto, dizer que existe uma linha reta da razao e uma linha que se desvia desta, que precisa, portanto, ser explicada. Tais explicaçoes aludem a, por exemplo: preconceitos, diferenças culturais, diferenças sexuais, diferenças raciais, burrice, outras explicaçoes sociológicas ou psicológicas etc. Esses fatores aparecem só quando cientistas tentam dar conta de por que existem tantos nao-cientistas.

As vezes ouve-se o comentário: "se eles tivessem mais educaçao, chegariam lá". Mas isso nao viola um princípio de simetría?

О interessante é que, dado o modelo de difusao, é evidente que о grosso da humanidade está embarcada nessa linha torta. Nao seria, portanto, para ser simétrico, que a linha reta merecesse explicaçao? Nao, diria um enfoque mais tradicional. A linha reta se autoexplica. Mas um relativista simétrico exigirá, da mesma forma, explicaçoes para as linhas reta e desviante. "Quais as condiçoes sociais para que essa linha reta seja traçada?" Tal pergunta nao teria cabimento dentro de um enfoque tradicional, mas, aqui, a simetría a exige. Além do mais, dado que se trata de uma linha que é seguida (se é que) por uma minoria, é o comportamento minoritàrio que precisa ser explicado, muito mais que o majoritário.

Em seguida, Latour apresenta très "julgamentos de racionalidade", envolvendo as críticas de Evans Pritchard aos azande, as dificuldades do sistema de cultivo e posse de terras nas ilhas Trobriand e o caso de Elisha Gray, que nao acreditava no telefone e investiu tudo no telégrafo. Seriam os azande irracionais? Seriam os trobriandeses ilógicos? Foi Gray um maluco, por nao enxergar as potencialidades do telefone? Nao, nao e nao. Pritchard nao percebeu que os mesmos critérios que os azande usam para definir bruxos quentes e frios sao usados nas sociedades ocidentais para definir a aceitabilidade do assassinato (que é e nao é crime, dependendo da ocasiao). Os trobriandeses tèm uma linguagem difícil que, se nao for compreendida, os faz parecer, à primeira vista, ilógicos. Gray nao viu as potencialidades do telefone mas, assim que as viu, tornou a coisa rentável e construiu um império, diferentemente de Bell, que mal soube aproveitar sua invençao. Gray preferiu apostar no telégrafo, que era uma tecnologia segura, e nao no telefone, inventado por um homem cuja profissao era tratar de surdos. Pode parecer ter sido uma má ideia, de a história nao for bem contada, isto é, contando-se as razoes dele e o desenvolvimento posterior da coisa. Levando isso em consideraçao, desaparece qualquer imputaçao de irracionalidade. Ou seja, imputaçoes de irracionalidade sao muito mais raras do que se costuma afirmar e só aparecem quando os fatos nao sao examinados a uma distáncia maior e com mais flexibilidade.

Com isso, Latour chega a uma socio-lógica. A lógica (ou a afirmaçao que uma alegaçao é "lógica") depende de em quantos pontos ela está bem amarrada.

Mas é preciso ter cuidado, pois "...Naperspectiva simétrica о que se ignora de todo é exatamente a existencia da rede científica, de seus recursos, de sua capacidade de, às vezes,fazerpropenderpara um dos lados o equilibrio deforças" (p. 320)

Ou seja, nao é porque um bom advogado livra seu cliente que podemos ficar tranquilos de que nao houve crime. O relativismo nao pode perder de vista que, mesmo ganhando os julgamentos de racionalidade, resta a questao de que um dos lados, de facto, detém o que se chama de racionalidade. E isso deve ser explicado. E nesse ponto que se deve examinar a sócio-lógica.

Latour coloca, a essa altura, seu quinto principio: os fatos duros sao exceçao; e sua sexta regra: diante de uma acusaçao de irracionalidade, deve-se deixar de lado a perspectiva que procura logo de saida que regra teria sido infringida. (pp. 343, 348)

Latour parece terminar em uma espécie de indutivismo ingènuo.

Quando conta a história de Lapérouse, Latour implica que os racionais o sao porque tèm condiçôes de reunir mais dados e de vè-los em conjunto. A expediçao desse francés chega às ilhas Sacalinas e là fica só um pouco. Sai de lá, dados os instrumentos que carrega, mais informado das costas e baixios do que os chineses que lá moram há séculosjamais puderam estar. Essas informaçoes sao transformadas em unidades móveis, estáveis e combináveis (mapas, tabelas, gráficos, enfim, em inscriçoes) e tudo isso é mandado para uma central de cálculo. Lá, diz Latour, os cientistas veem as coisas em conjunto e, dai, vem sua ciéncia. Existe o que se pode chamar de um "grande divisor" entre racionais e irracionais? Sim, mas nao devido à suposta fraqueza mental ou falta de condiçoes de educaçao dos irracionais, mas simplesmente porque os racionais saem de suas centrais, coletam, voltam, saem de novo, coletam de novo, em espiral. Isso, para Latour, é o que gera ciéncia.

De um lado, esse raciocinio faz lembrar "A mensuraçao da realidade", de Alfred Crosby, quando este vè no sucesso ocidental em produzir ciéncia a criaçao de técnicas de visualizaçao derivadas da atuária (as tabelas de dupla entrada), da música (a notaçao para polifonías) e da perspectiva (a cópia fiel da natureza tal como percebida pela retina). As centrais de cálculo latourianas produzem e processam informaçâo porque veem melhor os dados, porque desenvolveram técnicas de visao de conjunto. De qualquer forma, é preciso ver que essas técnicas:

1. determinam em parte que objetos podem ser coletados e processados
2. essa determinaçao precede a coleta

Ou seja, permanece a questao de que Lapérouse nao foi lá e recolheu qualquer coisa. Recolheu o que lhe interessava. E esse interesse era uma tomada de posiçao prèvia, decidida ANTES do contato com os objetos. E claro que isso pode mudar e se adaptar. Mas, em todo caso, decisöes têm de ser tomadas ANTES dos fatos aparecerem (se é, também, PARA os fatos aparecerem é outra questäo).

Quando Latour examina as controvérsias e tenta pôr em um quadro abrangente o contexto em que nascem e sao resolvidas, fica sempre a sensaçao de que as decisöes acontecem a reboque dos fatos. Fulano ve algo diferente e deve tomar uma decisao. A face esquerda de Jano dirá que a decisao foi tomada porque era racional. A face direita, da ciencia em açao, dirá que a decisao é racional porque foi tomada. No momento, nao existe muito como decidir e os cientistas, apesar disso, se viram. Mas nao é bem "no momento". Muito das decisöes se dá ANTES do momento. E essas decisöes sao pautadas em teorías, em palpites, se se preferir mas, de qualquer forma, nao respondem a fatos, mas a prefiguraçôes de resultados possíveis. E isso tem de ser explicado e nao pode sé-lo dentro desse indutivismo ultraingènuo de Latour. Os cientistas adaptam suas teorias, sim. Respondem aos fatos, sim. Mas nao derivam suas teorias totalmente dos fatos.

Dizer, como Latour faz, que a divisao se dá tao-somente pelo acúmulo de fatos é muito inadequado. E, se pensarmos que isso vem no final de um livro que começa tentando desmontar uma visao tradicional da ciencia como modelo de racionalidade, tanto mais decepcionante a coisa fica. Saímos de um positivismo elaborado para cairmos em um indutivismo aparentemente muito ingènuo.

A partir desse ponto, Latour fica algo esotérico:

1. os zoólogos veem coisas novas, pois essa é a primeira vez que tantas criaturas sao postas diante dos olhos de alguém (p. 365)
2. devemos nos preocupar nao com diferenças cognitivas, mas com essa mobilizaçâo gérai do mundo que dota alguns cientistas de casaca de Kew Gardens com a capacidade de dominar visualmente todas as plantas da Terra (p. 365/6)
3. ... Brahe é o primeiro que, num relance, considera o céu de verao, mais as observaçoes de seus colaboradores, mais ... (p. 368)

Vale aqui nesta passagem uma incrível primazia da visao que nem o mais ingènuo indutivista aceitaría. As teorías vèm de "relances", de por bichos diante de zoólogos ou plantas diante de botánicos. Faça-se isso com espécimes ou com inscriçoes e pronto: eis teoria.

A ideia subjacente parece ser a de que todos temos uma faculdade misteriosa que funciona toda vez que colocamos um grande número de qualquer coisa diante de nós. O problema que Latour nao aborda é que um grande número de alguma coisa depende dejulgarmos o que seja essa alguma coisa. Homens diferem em tudo (altura, cor, peso, inteligència etc.). Assim, o que é por muitos homens diante de alguém? E decidir ANTES o que eles sejam. Sem essa decisao, sao muitos, mas nao da mesma coisa. De novo a questao das decisoes prévias, que Latour nao resolve (e, até aí, tudo bem), mas sequer reconhece (e, aí, tudo muito mal).

Parte В

Centrais de Cálculo

Talvez seja possível "salvar" Latour da impressao de indutivismo ingènuo.

Suponha o antropólogo da ciència perdido em uma grande cidade. Ele entra em qualquer loja, em qualquer onibus, fala com qualquer um, nao importa. Se seu propósito for encontrar pessoas que se envolvem em controvérsias por profissao e as levam a um nivel elevadíssimo, em breve chegará à tecnociència. Passará, certamente, pelo direito. Mas descobrirá que existe um grupo para quem as controvérsias que acontecem nas cortes sao brincadeira. Pessoas que, para resolver controvérsias, constroem instrumentos caríssimos, citam bibliografías incompreensíveis e extensas, constroem redes amplas e heterogèneas. Terá, entao, chegado aos tecnocientistas. Ou seja, nao importa onde se comece e que suposiçao se faça, se о fio condutor da pesquisa for "buscar a mais alta concentraçâo de controvèrsia", o resultado será ciencia e tecnologia.

Chegando a esse grupo, o antropólogo começa a examiná-lo. Descobre, entao, que se trata de um grupo muito heterogéneo. Existem pessoas presas diretamente ás bancadas. Existem outras cujo trabalho influencia diretamente as primeiras, mas que quase nunca entram no laboratòrio. Existem todos os graus intermediários e, ainda, essa rede vai se tornando mais diáfana á medida que nos distanciamos dos centros de controvèrsia.

Examinando esses centros, vemos que o trabalho è sempre de coleta de inscriçoes e que mesmo os que trabalham em ciéncias ditas formalizadas nao trabalham com "o lá fora", mas com inscriçoes que se adaptam á linguagem da teoria. E por que se adaptam?

Porque, responde o autor, as teorías nascem sempre da coleta de dados. Mas isso nao è indutivismo ingènuo? Depois de desmontar a ideologia da ciéncia (que defendejustamente esse indutivismo) e parecer tender a um enfoque mais relativista, nao estaria Latour nos decepcionando? Talvez. Mas, talvez, haja outra explicaçao.

Citando o autor:

... todos os dominios ingressam no "seguro caminho da ciéncia” quando seusporta-vozes tém tanto aliados a seu lado". (p. 378)

Essa frase talvez salve Latour do indutivismo ingènuo. Ele seria, podemos dizer, um "indutivista histórico". Assim como qualquer ponto de partida, desde que o fio condutor da pesquisa seja a densidade de controvèrsias, nos leva á tecnociéncia, qualquer dominio, se iniciar um processo de coleta, sistematizaçao, produçao de inscriçoes e produçao de inscriçoes de enèsima ordem, será tambèm ciéncia. E nao importa o qué. A fisiognomia, por exemplo, era ciéncia. Ok, nao è mais. Mas isso dizemos nós hoje. Cerca de um sèculo e meio atrás, nao teriamos como fazer essejulgamento, pois a coisa era, efetivamente, ciéncia: recolhiam-se amostras, inscriçoes eram produzidas, tais inscriçoes eram tabeladas, depois, eram sintetizadas em novas inscriçoes etc. etc. etc.

Ou seja, qualquer campo que se tome é ciéncia desde que haja coleta e "corrida probatòria". Afinal, nao pode haver tal corrida sem dados. Portanto, coleta è essencial.

Agora, poderiamos dizer, essa coleta è orientada por um ponto de vista prèvio. De acordo.

Mas podemos dizer, igualmente, que esse ponto de vista prèvio é resultado de mais coleta. Há ai uma regressao irresolvível. Podemos, agora, resolvè-la de duas maneiras:

(1) postulando uma capacidade especial de teorizar a partir do nada e
(2) imaginando que as teorías de hoje sao resultado de coleta e servem de guia ás teorías de amanha.

A questao seguinte que se coloca è de como as teorias surgem dos dados. Latour responde que os cientistas tèm, nos centros de cálculo, condiçôes de ver "num relance" muitos dados. Logo, desde que se desenvolvam técnicas de visualizaçao, as teorias (que podem ser entendidas como regras de comparaçao muito abrangentes) aparecem.

E como se desenvolvem as técnicas de visualizaçao de inscriçoes? De modestas coleçôes de fatos. Se ninguém questionar essa coleçao, ela fica como está. Se for questionada, deverá responder. Só poderá fazè-lo com mais dados. Mas mais dados afogam o coletor de dados. Logo, ele deve desenvolver técnicas de visualizaçao que lhe permitam manusear esses novos dados. E de onde ele tira essas técnicas? Dos dados? Nao. Elas sao caixas pretas, modos de ver (ou inscrever, ou visualizar) que, no passado foram controvertidos e, agora, sao apenas contexto. O cientista nao precisa reinventar as tabelas de dupla entrada, ou a análise de dispersao, pois isso é contexto. E quando nao era? Entao, era o caso de se terem muitos dados e se notar, por exemplo, que médias nao refletiam cornetamente a situaçao reais com muitos individuos desiguais. Vendo o problema, criou-se uma controvérsia: "seus dados nao valem nada"; "valem sim, pois tèm baixa dispersao"; baixa o què?"; "dispersao, que defino como...". E assim por diante. Levando em conta um senso comum bem aceitável, que nos diz que criamos soluçoes a partir de problemas, é fato que os problemas sao sempre controvérsias que versam sobre dados.

Mas e a fisica teórica e a matemática? Versam sobre dados também, mas sao inscriçoes de enésima ordem, tao amplamente aplicáveis (porquejustamente tao distantes do conteúdo do problema que lhes deu origem) que parecem vindas de outro mundo. Mas nao sao. Sao deste.

Se isso vale, resolve-se outra questao intrigante: "por que a matemática dá tao certo na natureza?". Resposta: devido a sua história. E dá mesmo certo na natureza? Provavelmente, nao. Dá certo em urna natureza codificada. Dá certo quando pessoas, árvores, votos viraram tabelas e gráficos. Entao, o estrato matemático deita-se sobre o estrato (igualmente matemático) dos gráficos. Fora, no mundo, a coisa nao funciona. E quando nao funciona é que surgem osjulgamentos de racionalidade.

Por isso, Latour fala em usar o termo "abstraçao" só como substantivo, mas nunca usar o adjetivo "abstrato", pois nao existem teorías abstratas. O que existe é inscriçoes de enésima ordem. (p. 393)

Como nño há Umitepara a cascata de reescritura e re-representaçdo,podem-se obter formas de enésima ordem que se combinam com formas de enésima ordemprovenientes de regiöes completamente diferentes. Sao esses novos nexos inesperados que explicampor que asformas importam tanto epor que os observadores da ciéncia vibram tanto com elas. (p. 396)

As formas sao explicadas com quatro características e Latour se propoe a ficar com o "grao de verdade" que existe em cada uma:

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Ou seja, todas essas características expressam algo de o que sao teorias científicas, mas todas podem ser explicadas a partir do trabalho de coleta, inscriçao e representaçoes de n ordens.

A esta altura, Latour aponía a carencia de um estudo antropológico do formalismo e atribui a isso a alternativa fácil de considerar o formalismo resultado de capacidades cognitivas superiores. Entao, propöe sua

SÉTIMA REGRA METODOLÓGICA:

uma moratória para explicates cognitivas para a ciencia e a tecnologia.

Essa regra é diferente das anteriores, pois deixa aberta a possibilidade de que todo o estudo mostrado em "Ciencia em Açao" esteja errado. Trata-se de um desafio e de um programa.

Latour dá também exemplos em que esse "lá fora" é só aparente. Alan Shepard repetiu seu voo dezenas de vezes em terra antes de subir. É por isso que tudo deu certo lá fora, no espaço. É que o lá fora havia sido trazido para o laboratòrio e as técnicas foram adaptadas a esse "lá fora" trazido. Feito isso, é claro que as coisas devem dar certo. E, quando dao errado, dao errado em detalhe.

[Nesseponto, talvez valesse urna digressào sobre о caso da Challenger, exposto em "The Golem atLarge". A nave caiu, mas nñoporque tivesse havido negligència ouporque o "là fora" era desconhecido. Caiuporque houve, de fato, um acídente imprevisível. As especificaçoes da nave estavam corretas e a temperatura do dia do lançamento estava dentro de limites aceitàveispara a resistència do anel que acabou se rompendo e deixando vazarcombustível. Nesse exemplo, como em tantos outros, o "làfora"foi inteiramente codificado, o que näo quer dizer que nñopossa haver acidentesf

Outro exemplo de "lá fora" que nao é tao fora assim é dado por um experimento levado a cabo por Pasteur em uma fazenda. Pasteur afirma que, depois de alguns dias de administrada uma vacina, o grupo de animais vacinado resistirá e o grupo nao vacinado morrerá. Mas ele sabe que isso nao vai funcionar em uma fazenda suja, na qual muitos outros fatores estragariam os resultados. O que faz? Transforma a fazenda em um laboratòrio, mandando para lá assistentes, antes do experimento "no campo", para alterar tudo o que pudesse atrapalhar os dados, mas tomando cuidado de manter as aparencias, a fim de que o experimento fosse convincente.

Disso, concluí Latour que as teorías sao frágeis e que, apesar disso, cobrem o mundo. Mas como cupins, que vivem em cupinzeiros muito extensos: nao importa a extensao, desde que o cupim trafegue dentro de uma galeria. A ciencia alcança tudo nesta sociedade, mas isso apenas porque as galerias avançam por todos os lados. A sociedade em que essa ciencia atuajá nao é "lá fora". Quando isso (a ciencia fora da rede, o cupim fora da galeria que construiu) acontece, tudo falha.

Vem entao uma excelente analogia. De que serve um mapa se estamos em um descampado? Näo podemos, por melhor que seja o mapa, confrontá-lo com a natureza "lá fora". Confrontamos o mapa com um mundo devidamente sinalizado (placas, marcos, faróis etc.). Confrontado com a natureza (da qual, supostamente, fala) o mapa é inútil.

Alguns temas para monografías:

(1) 0 que é a filosofia da ciencia para Latour?
(2) Latour descreve ou tece uma teoria sobre a ciencia?
(3) A teoria (se for) de Latour é empírica? 0 que, entao, a refutaría?
(4) Qual o estatuto dos exemplos em "Ciencia em Açao"? Eles sao essenciais para a compreensao do ponto ou o livro poderia se resumir ás listas de regras e de principios.
(5) Até que ponto Latour pode seguir os cientistas, sem pré-juízos, sendo, ele mesmo, cientista?

Ende der Leseprobe aus 42 Seiten

Details

Titel
"Ciência em ação" de Bruno Latour. Um texto de acompanhamento de leitura e sugestões de monografias
Veranstaltung
Sociologia
Note
10,0
Autor
Jahr
2000
Seiten
42
Katalognummer
V299540
ISBN (eBook)
9783656961123
ISBN (Buch)
9783656961130
Dateigröße
494 KB
Sprache
Portugiesisch
Schlagworte
Latour, T.S. Kuhn, Paul Feyerabend, sociologia da ciência, filosofia da ciência, ciência, tecnologia, experimento, translações, regras metodológicas, sociologia, laboratórios
Arbeit zitieren
Dr. Vittorio Pastelli (Autor:in), 2000, "Ciência em ação" de Bruno Latour. Um texto de acompanhamento de leitura e sugestões de monografias, München, GRIN Verlag, https://www.grin.com/document/299540

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