As metamorfoses da crítica. A trajetória de Foucault entre a Arqueologia e a Genealogia


Doktorarbeit / Dissertation, 2001

238 Seiten, Note: 10,0


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INTRODUÇÃO

Pensar diferentemente

O objetivo deste livro é fazer uma análise ao mesmo tempo estrutural e cronológica da obra de Foucault, buscando sua lógica interna, mostrando o itinerário de seu pensamento, suas etapas de elaboração, as dificuldades com que se deparou ao longo dessa trajetória, os conceitos que foram introduzidos, transformados ou abandonados, os seus temas e problemas centrais. O pensamento de Foucault é certamente dinâmico, proteiforme, mas possui coerência interna e até uma certa sistematicidade. Essa sistematicidade se revela na concatenação de três instâncias, que realizam, cada uma delas, um deslocamento fundamental na tradição filosófica: uma nova concepção da crítica, uma nova concepção do método e uma nova concepção das práticas. Com esses deslocamentos, Foucault reformula a tarefa do pensamento, dando à crítica uma nova finalidade e novos recursos.

A crítica tal como formulada por Kant tinha a função de conduzir o homem ao estado de maioridade, libertando-o das ilusões transcendentais que o aprisionam. Podemos dizer que Foucault submete o projeto crítico a uma metamorfose, que o desembaraça dos resíduos transcendentais e idealistas que ele ainda carregava em Kant. Uma primeira metamorfose da crítica foi realizada pelos ataques de Nietzsche, Freud e Marx, um independentemente do outro. Com o trio de pensadores, a crítica deixa de buscar as condições formais de possibilidade da experiência para buscar as suas condições reais, o seu a priori concreto e contingente, seja nas formas e relações de produção, nas representações do inconsciente e do desejo ou na história da moral. Segundo Foucault, eles teriam criado uma nova hermenêutica, através da qual temos que nos interpretar a nós mesmos, como os textos de Nietzsche, Freud e Marx fossem eles próprios hieróglifos a ser decifrados.

Mas essa ainda não é a última palavra da crítica. Nova metamorfose: é preciso que o pensamento deixe de legitimar a ciência, para submeter à suspeita o próprio ideal científico da procura da verdade. Entre o trio de pensadores críticos há uma assimetria, que assinala os limites da identificação entre os três: é que Freud e Marx pretenderam ser fundadores de novas ciências e deram origem, cada um deles, a instituições poderosas e novas formas de poder. Para Foucault, há um privilégio de Nietzsche, por ter sido o único a ter posto em questão o próprio ideal de procura desinteressada da verdade, a “vontade de verdade” da cultura ocidental, além disso, Nietzsche nunca pretendeu fundar nenhuma disciplina nova, nem autorizou a utilização de sua obra a serviço de nenhuma forma de poder. Freud e Marx são “fundadores de discursividade” e aí é que está a sua limitação. Nietzsche é quem realiza a primeira crítica integral e é certamente a referência fundamental para se compreender Foucault.

O pensamento de Foucault se elabora no decorrer de crises periódicas e através da autocrítica permanente de seus próprios pressupostos. É um pensamento dinâmico, experimental, que está em perpétua metamorfose e que procura, por diferentes caminhos, estabelecer uma relação intempestiva com o tempo presente. Rejeitando radicalmente toda abordagem transcendental e abrindo-se ao movimento da história, o pensamento crítico se esforça por se desvencilhar de si mesmo, por se transformar internamente. Seu novo imperativo é “pensar diferentemente”:

O que é filosofar hoje em dia [...] senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente, em vez de legitimar o que já se sabe?[1]

É nesse sentido que para Foucault a crítica deixa de ser uma doutrina ou um sistema para tornar-se uma atitude, um ethos filosófico, através do qual o pensamento se dobra sobre sua própria história e, correlativamente, o sujeito pensante é levado a se auto-transformar, pois vida e pensamento não se separam mais. A reflexão de Foucault é rigorosa e exigente. Assumindo o perspectivismo do próprio pensamento, ela abandona qualquer facilidade dogmática. Toda posição de verdade é rigorosamente mantida em suspenso, entre parênteses. Não pretende introduzir uma nova verdade, nem fundar uma nova disciplina. É sob a forma do ensaio histórico que ela se formula, para “saber em que medida o trabalho de pensar a sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente”.[2]

O pensamento de Foucault, portanto, é a tentativa de tornar rigorosamente válida a caracterização da modernidade feita por Kant como a “época da crítica permanente, à qual tudo tem que se submeter[3] e que Foucault redefine como a “crítica permanente de nós mesmos”, o questionamento ininterrupto do “nosso ser histórico”. Não devemos negligenciar o real alcance dos deslocamentos que Foucault efetua na história do pensamento. Para isso, teremos agora que interrogar a prática foucaultiana da história.

Em seu livro sobre Foucault, Deleuze afirma que “a obra de Foucault entra na corrente das grandes obras que alteraram para nós o que significa pensar[4] e, numa de suas entrevistas, caracteriza assim a prática foucaultiana da história:

A história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos [...]. Em suma, a história é o que nos separa de nós mesmos, e o que devemos transpor e atravessar para nos pensarmos a nós mesmos.[5]

A prática da história em Foucault se opõe tanto ao transcendentalismo filosófico, que só concebe o conceito na forma de objetos eternos e idealidades, quanto à historiografia tradicional, que reduz o acontecimento ao contexto ou o dilui em grandes estruturas imóveis. Não há nada mais ilustrativo da posição dos historiadores tradicionais em relação à obra de Foucault, do que o debate entre Foucault e Jacques Léonard em 1978, no contexto de um colóquio sobre a prisão realizado pela historiadora Michelle Perrot. Comecemos com as críticas de Léonard: "M. Foucault percorre três séculos, à rédea solta, como um cavaleiro bárbaro. Ele queima a estepe sem precaução. O historiador, entretanto, não tem o direito de fazer economia das verificações sociológicas e cronológicas".[6]

Esta crítica se aplicaria não apenas ao Vigiar e Punir, mas a todos os livros historiográficos de Foucault, que percorrem vários séculos de história sem se importar nem com o tipo de sociedade que está em jogo, nem com a massa documental envolvida. Segundo Léonard, "é preciso, para ser competente, ter respirado longamente a poeira dos manuscritos, envelhecido nos depósitos dos arquivos departamentais, ter disputado com sorrisos os tesouros dos sótãos dos presbitérios".[7] O filósofo, personagem altivo e soberbo, não tem o direito de escrever um ensaio sobre quatro séculos de história, enquanto o historiador, personagem humilde e paciente, dedica seus melhores anos a vasculhar a documentação de determinada região e determinado período bem preciso, para dar uma contribuição pequena mas honesta à sua área de estudos..

O que está em jogo, como vemos, é a separação entre um uso legítimo e um uso ilegítimo da história. Que não tenha a pretensão de chamar a si mesmo de historiador quem nunca teve asma ou alergia por respirar a poeira dos arquivos! O problema maior, implícito nesta crítica, é a pretensão positivista à objetividade, ao estudo empírico efetivo dos indícios deixados pelo passado. A esta questão se associa uma outra, se somente uma análise sociológica, cronológica e factual é legítima em história, ou se também há lugar para uma análise formal? Vejamos a resposta de Foucault.

Em primeiro lugar, Foucault afirma que seleciona sua documentação em virtude de um "problema" e não de um objeto a ser estudado, pois não existem objetos naturais, dados prévios para o conhecimento: é o próprio ato de conhecimento que põe os objetos de que trata. Sujeito e objeto se constituem correlativamente, como Foucault demonstra na Arqueologia do Saber. Assim, não seria obrigatório ler toda a documentação sobre o objeto "prisão" para fazer uma história dos sistemas penais na França. Para Foucault, não se trata de analisar a sociedade francesa ou as instituições penais francesas, mas “[ ¼ ] a intenção reflexiva, o tipo de cálculo, a ratio que foi posta em prática na reforma do sistema penal".[8] A sociedade não seria a única realidade histórica, uma maneira de pensar, uma técnica, um sistema seriam formações históricas tão reais quanto a sociedade e teriam o mesmo direito que ela de ser objetos de pesquisa.

Para assegurar a legitimidade de seu trabalho histórico, Foucault procura explicitar o nível em que se coloca, em relação às muitas formas possíveis de realizar um trabalho historiográfico. Ressalta que não trata nem de instituições, nem de teorias, nem de ideologias ou representações, mas de "práticas", que possuem uma lógica interna, uma sintaxe específica, uma "regularidade" própria. As práticas não podem ser assimiladas a representações ou ideologias, nem à infra-estrutura econômica, pois são "o lugar de união entre o que se diz e o que se faz"[9], ou seja, são um campo de relações que entrelaça o prático e o teórico.

Dessa concepção da prática surge uma nova concepção do processo histórico como da sua inteligibilidade. O procedimento genealógico, nesse caso, consiste em eliminar a causalidade e a determinação linear em história, de modo que não seja mais possível conceber o discurso como reflexo ou representação de uma realidade exterior que funciona como referente. Em lugar da causalidade, deve-se “[ ¼ ] constituir em torno do evento singular analisado como processo um polígono, ou melhor, um poliedro de inteligibilidade, cujo número de faces não está definido de antemão e que nunca pode ser considerado como totalmente acabado".[10]

É dessa nova concepção do processo histórico e da forma de abordá-lo, que se descortina o que chamaremos neste livro de "lógica atonal". Trata-se de um poderoso instrumento metodológico que possibilita superar tanto a teoria do reflexo, da qual o historiador tradicional ainda não conseguiu se desvencilhar, quanto o estruturalismo, que se manteve fechado à dimensão da historicidade, negando o a especificidade do acontecimento. O projeto foucaultiano parece ser o de superar o fosso que sempre existiu entre uma filosofia da história, por demais abstrata, e uma historiografia empírica, por demais positivista. Ao mesmo tempo em que faz uma história empírica das práticas, Foucault também retoma problemas clássicos da filosofia da história. Qual é o sentido do presente? Como a razão age na história? Qual a inteligibilidade do processo histórico? Questões fundamentais que perpassam toda sua obra, da História da Loucura aos últimos escritos sobre as práticas de subjetivação na Grécia Antiga. Com efeito, Foucault define nesta fórmula simples e singela sua prática da história: "fragmentos filosóficos em vestes históricas". Trata-se de unir novamente os pólos separados do estudo empírico da história concreta e da crítica filosófica do mundo. Daí a circularidade, a inseparabilidade entre crítica e história: “[ ¼ ] trata-se dos efeitos, sobre o saber histórico, de uma crítica nominalista que se formula a si mesma mediante uma análise histórica".[11]

Foucault, de certa maneira, renova a tradição francesa da histoire philosophique, inaugurada por Voltaire, que interrogava filosoficamente a história. É por isso que o ensaio de Nietzsche sobre a utilidade da história para a vida foi tão importante para ele: o que marca a sua prática da história é a exigência de uma história a serviço da vida, do presente e da transformação. Uma história erudita, mas também seletiva e engajada, que aceita o seu próprio perspectivismo, não como uma limitação inevitável, mas como uma arma crítica Nessa prática da história, a memória torna-se uma potência dinâmica e ativa, não apenas material inerte, arquivo morto do passado que se oferece à curiosidade vetusta dos historiadores. Foucault pratica uma historiografia em forma de ensaio, uma historiografia “experimental”, que se formula e se reformula continuamente, acompanhando o movimento do próprio pensamento. E como todo grande ensaio desde Montaigne, o ensaio histórico de Foucault não é somente reflexão sobre objetos, mas também “escritura de si”, através da qual o indivíduo formula e transforma sua experiência do mundo, na mesma medida em que formula e transforma a si mesmo.

Foucault nos leva também a reconhecer os equívocos da historiografia tradicional. É uma ilusão pretender fazer história só empírica, como se as elaborações teóricas fossem complicações dispensáveis. Os documentos não falam por si próprios. É preciso todo um processo de construção do conhecimento e de intervenção ativa do historiador sobre a documentação para a realização da pesquisa histórica. Toda vez que se rejeita a teoria retorna-se ao realismo vulgar do senso comum, e perde-se todo rigor metodológico, pois por mais que o estatuto dos conceitos na historiografia seja limitado, não existe nenhum conhecimento sem construção de conceitos. Há hoje uma hostilidade neo-humanista a todo formalismo metodológico, como se a problematização teórica excessiva fosse deixar escapar a verdade escondida no documento.

Neste livro, damos especial atenção ao “kantismo” de Foucault, que consiste na busca das condições de possibilidade dos objetos históricos, em vez de se limitar a uma descrição. Categorias usuais como sujeito, objeto e enunciado deixam de ser óbvias e passam a ser problematizadas como funções internas ao discurso. A definição do próprio conceito de discurso, um dos termos centrais do vocabulário foucaultiano, é extremamente complexa, apesar da obviedade aparente. (Essas questões metodológicas serão abordadas especialmente na segunda parte deste livro). Contudo, o kantismo de Foucault é muito particular e não poderia se confundir com a adoção de um dogma, pois todo o seu pensamento implica uma crítica da filosofia acadêmica, que se isola do mundo histórico e social, fechando-se na sua torre de marfim. Para Foucault, se não há autonomia do teórico face ao empírico, não faz sentido enfatizar a divisão disciplinar, separando historiografia empírica e discurso teórico. Na história também há pensamento inteligente, o historiador também pode ser um pensador e o seu trabalho de pesquisa pode e deve levar a questionamentos mais amplos sobre questões de princípio. Assim, é extremamente importante que a história se atualize e se oriente pelas questões surgidas na filosofia e nas ciências humanas, sob o risco de voltar a sua função tradicional de ser apenas a protetora e a conservadora da memória coletiva.

Neste livro, me concentrei preferencialmente no aspecto metodológico do pensamento de Foucault, enfocando as razões da passagem da arqueologia para a genealogia. Esse é um aspecto essencial para se compreender a trajetória de Foucault. Na primeira parte, analiso o kantismo de Foucault e sua compreensão do projeto crítico, mostrando como a crítica das ciências humanas se amplia para uma avaliação de toda a herança da modernidade, centrada na figura da subjetividade fundadora e no discurso do homem como novo transcendental e centro de sentido. Na segunda parte, analiso a teoria arqueológica do discurso, central em todo o percurso de Foucault e indispensável para compreender sua obra. Trata-se essencialmente de uma análise da Arqueologia do Saber, reflexão metodológica onde Foucault propõe uma teoria da prática discursiva, entendida como um sistema aberto, descentrado e cujas relações são infinitamente extensíveis, portanto, um sistema serial, topológico, destinado a substituir a história tradicional das idéias. Finalmente, na terceira e última parte, analiso a questão das práticas, do poder e da norma, temas em torno da qual Foucault rearticula seu pensamento, passando da arqueologia dos discursos para uma genealogia das práticas de dominação e de constituição de subjetividade. Inspirando-se na genealogia da moral de Nietzsche, Foucault completa o edifício de seu pensamento enfocando domínios como as práticas e procedimentos penais, a sexualidade, as práticas de governo e autogoverno, além de outras, entendidas como experiências morais através das quais o sujeito se constitui na sua identidade. Que preço a cultura paga pela fixação de uma identidade ao sujeito? Qual a relação entre essas práticas e as constelações móveis do poder? Como se constituem, ao longo da história, ao lado das práticas de subjetivação e dominação, também práticas de dessubjetivação e de liberdade, constituindo resistências onstituindo resisitvaçngo da histi na sua identidade.eta o ediftido arqueologia dos discursos para uma genealogia das pr ao avanço do poder? São todas essas questões que nortearam a crítica genealógica no pensamento de Foucault.

Ao abordar a questão da resistência, devemos lembrar que há um elemento liberal - um iluminismo cético - em Foucault (que o assemelha a grandes pensadores liberais, como Isaiah Berlin e Raymond Aron, mas não o confunde com eles, por sua posição política de esquerda) - esse elemento se evidencia na rejeição da utopia, que para ele é sempre negativa, da ordem do delírio político, da monstruosidade do poder (o Panopticon de Bentham é um exemplo de utopia política). Foucault é anti-utopista, e por isso acentua o papel do presente, da atualidade e das possibilidades abertas para a mudança no presente vivido. Toda tentativa de melhorar a sociedade, impondo-lhe uma norma ideal ditada pela razão, parece reverter no seu contrário, levando ao aumento da dominação, percepção que aproxima Foucault da crítica da história feita na Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Assim, Foucault avalia o legado da modernidade ocidental, reinventando a crítica kantiana numa forma de pensamento (“História dos Sistemas de Pensamento”, como se chamava a sua cátedra no Collège de France) que poderíamos chamar de historicismo crítico.

Trata-se de avaliar o custo da modernidade, as suas implicações como escolha civilizacional, mas ao mesmo tempo descortinar as suas potencialidades não desenvolvidas, mas jamais de projetar um futuro perfeito ou ideal, nem a promessa do advento de um quimérico homem novo. É que o tempo das grandes utopias políticas passou, e ficamos reduzidos à contingência do nosso presente e da nossa individualidade. A reflexão sobre o pensamento de Foucault nos faz pensar se o presente, o cotidiano e a individualidade não seriam justamente nossos mais preciosos tesouros, até agora negligenciados e denegridos, em benefício de duvidosos mas grandiloqüentes ideais, e se um mundo diferente poderia ser construído sobre a contingência da vida. É que, como dizia Nietzsche, os pensamentos que mudam o mundo são imperceptíveis como os passos da pomba, ao contrário dos grandes ideais, em torno dos quais a opinião pública faz estardalhaço.

Primeira Parte A CRÍTICA

«Erkenne dich selbst» ist die ganze Wissenschaft. - Erst am Ende der Erkentniss aller Dinge wird der Mensch sich selber erkännt haben. Denn die Dinge sind nur die Gränzen des Menschen.»

[“Conhece a ti mesmo” é todo o saber. - Somente ao termo do conhecimento de todas as coisas o homem terá conhecido a si mesmo. Pois as coisas são apenas as fronteiras do homem.»]

Nietzsche

Capítulo I Entre o histórico e o transcendental

1. O kantismo de Foucault

Em 1984, ano de sua morte, Michel Foucault escreveu um artigo sobre si mesmo para o Dictionnaire des Philosophes, assinando-o sob o pseudônimo de Maurice Florence (nome que tem as mesmas iniciais que o seu: M. F.) para evitar ser reconhecido. Esse artigo, um de seus últimos textos, funciona como uma espécie de testamento intelectual, onde Foucault revela como gostaria de ser lido, sob que posição gostaria de ser lembrado dentro da tradição filosófica. Com efeito, neste artigo lemos:

Se Foucault se inscreve na tradição filosófica, é na tradição crítica, que é a de Kant, e se poderia chamar seu empreendimento História crítica do pensamento. Por esta última não se deveria entender uma história das idéias que seria, ao mesmo tempo, uma análise dos erros que se poderia depois avaliar; ou uma decifração dos equívocos aos quais elas estão ligadas e dos quais poderia depender o que nós pensamos hoje. Se por pensamento se entender o ato que põe, em suas diversas relações possíveis, um sujeito e um objeto, uma história crítica do pensamento seria uma análise das condições nas quais se formaram ou se modificaram certas relações de sujeito a objeto, na medida em que estas são constitutivas de um saber possível.[12]

Qual é o sentido desse gesto de Foucault? Qual é o estatuto do seu “kantismo”? Ele quer, sem dúvida, com esse gesto, reafirmar o legado da modernidade e reivindicar também para si a herança kantiana, que é o primeiro projeto desta modernidade, contra as filosofias pós-modernas, para as quais a modernidade era uma narrativa terminada[13]. Mas qual é a sua interpretação da modernidade e do kantismo? Em que essa interpretação contribui para esclarecer o itinerário de seu pensamento? São questões que só podem ser respondidas após um exame cuidadoso da crítica que Foucault faz da modernidade, e o ponto de partida para este questionamento é a relação ambígua que Foucault estabeleceu com Kant, desde o início de sua obra até seus últimos textos[14]. É uma tarefa de fôlego que transcendente os objetivos deste capítulo. O que pretendemos é apenas dar algumas indicações sobre a relação que Foucault estabelece não somente com a obra de Kant, mas com a modernidade. Abordaremos, inicialmente, a leitura que Foucault faz de Kant na época das Palavras e as Coisas, localizando uma tensão entre o projeto crítico e o antropologismo kantiano e em seguida, dando um salto de cerca de vinte anos, interrogaremos sua relação com Kant a partir de alguns de seus últimos textos, nos quais Foucault procura uma “ontologia do presente”.

No mesmo ano em que publicou As Palavras e as Coisas, 1966, Foucault resenhou uma das principais obras de Cassirer, La philosophie des lumières, que na ocasião tinha sido traduzido pela primeira vez para o francês. Nesta resenha Foucault afirma:

Cassirer é neokantiano. O que se designa por esse termo é, mais que um movimento ou uma escola filosófica, a impossibilidade em que se encontrou o pensamento ocidental de superar o corte estabelecido por Kant: o neokantismo (neste sentido, todos nós somos neokantianos), é a injunção sempre renovada de reviver este corte - ao mesmo tempo para reencontrar sua necessidade e para tirar-lhe toda a medida .[15]

O corte estabelecido por Kant instaurou a modernidade como a “época da crítica”, à qual tudo tem que se submeter, sem exceção[16]. Mas, está pressuposto também, no argumento de Foucault, que a impossibilidade de superar o corte kantiano pretende negar a pretensão da dialética, seja a de Hegel, seja a de Marx, de tê-lo feito. O corte epistemológico que funda a modernidade não é apenas uma constatação histórica, mas uma atitude a ser reativada constantemente, indicando uma permanência da modernidade como constitutiva do ser mesmo do homem moderno e não como permanência do corpus doutrinário kantiano. Esse corte kantiano coincide com o que Foucault chama de acontecimento - entendido positivamente como fato, o acontecimento que deu origem à nossa modernidade localiza-se precisamente na curva entre os séculos XVIII e XIX, mais precisamente ainda, entre os anos 1775 e 1825.

Foucault também atribui a Cassirer a invenção de um método, transcendental e histórico ao mesmo tempo, para abordar o domínio da história das idéias, método que seria precursor da sua arqueologia. O novo método suprime a busca da gênese das idéias na psicologia dos sujeitos, num núcleo interno de sentido, mas também interdita procurar a causa das idéias nas condições sociais e econômicas que lhes são exteriores. A emergência das idéias é explicada através da autonomização do seu campo teórico de emergência, ou seja, na busca pelas suas condições de possibilidade:

Cassirer procede segundo uma espécie de abstração fundadora: de um lado, ele apaga as motivações individuais, os acidentes biográficos e todas as figuras contingentes que povoam uma época: de outro lado, ele afasta ou ao menos deixa em suspenso as determinações econômicas ou sociais. [¼] Ele isola de todas as outras histórias (a dos indivíduos, assim como a das sociedades) o espaço autônomo do teórico: e sob seus olhos se revela uma história até então muda.[17]

A descoberta de “uma história até então muda” é o objetivo da arqueologia do saber, método de investigação empregado nos primeiros livros de Foucault[18]. As duas principais exigências metodológicas são: 1. purificar o campo discursivo dos elementos psicológicos, da intencionalidade dos sujeitos - considerados meros efeitos de superfície - e 2. autonomizar o discurso, separando-o e isolando-o do seu contexto sócio-econômico e deixando de considerá-lo como mero reflexo das infra-estruturas, como na teoria marxista da história. A possibilidade de "deixar entre parênteses" as determinações subjetivas e sócio-econômicas, isolando do processo histórico como um todo a dimensão da linguagem pura, envolve um pressuposto teórico fundamental - o de que o processo histórico não é unitário, mas constituído de uma pluralidade de temporalidades irredutíveis umas às outras. Isolar a dimensão do discurso puro seria uma operação semelhante à redução química dos elementos de uma mistura complexa, isolando somente um dos elementos para obtê-lo em estado puro. Se bem sucedida essa operação aplicada à história demonstraria que não há uma temporalidade única, nem um núcleo de sentido a partir do qual as diferentes temporalidades pudessem ser hierarquizadas, haveria apenas uma absoluta dispersão temporal, sem centro nem totalidade - uma temporalidade atonal e aberta.

É a operação que foi testada nas Palavras e as Coisas, como radicalização do método até então empregado na História da Loucura e no Nascimento da Clínica - obras que ainda pressupunham um centro de sentido na forma de uma estrutura unitária (a divisão “trágica” entre razão e desrazão para a primeira e o “olhar médico” para a segunda) . Isso explica porque nas Palavras e as Coisas, são ignoradas propositalmente as dimensões concretas do sujeito e da sociedade: não se trata de reduzir tudo à linguagem, mas de cindir o tempo, marcando uma temporalidade interna, uma série independente do discurso, sem que disso se conclua, obviamente, que o discurso não sofre nenhuma determinação histórica externa.

Contudo, continuando a discussão sobre o kantismo em Foucault, esse procedimento de autonomização do teórico configura um kantismo às avessas, ao qual se poderia aplicar a mesma expressão que Paul Ricoeur aplicou a Lévi-Strauss: trata-se de um “kantismo sem sujeito transcendental”. Veremos ao longo do trabalho como, apesar de excluir o sujeito constituinte do campo discursivo, Foucault preserva o transcendental sob uma outra forma. Todo o problema da arqueologia é como fundamentar esse transcendental histórico, sem ponto fixo ou referência absoluta em valores universais.

Essa vocação neokantiana, ainda que consideremos o termo num sentido amplo, não deixa de nos surpreender, aplicada ao autor da História da loucura, adversário de toda filosofia do sujeito[19]. O que Foucault entende por corte kantiano seria menos a instauração da filosofia kantiana como corpus doutrinário, e mais sua permanência como problemática crítica, como dever de criticar os limites da racionalidade sob todas as suas formas (científica, técnica, política etc) e principalmente, como obrigação de criticar o presente, a atualidade. Tentemos, assim, esclarecer um pouco qual a significação de Kant para Foucault.

Em diversas ocasiões, especialmente em seus últimos anos, Foucault retorna ao pensamento kantiano, dando especial atenção ao conceito de modernidade e ao famoso texto “Was ist Aufklärung?” Não retomaremos aqui seus argumentos sobre a modernidade, nem sobre o significado do texto de Kant em sua obra. Queremos apenas questionar: em que medida e em que sentido Foucault poderia ser identificado com a tradição kantiana? Qual o significado da crítica kantiana na construção de sua própria versão genealógica da crítica?

1.1. O “sono antropológico”

No momento, consideraremos apenas a análise do kantismo nas Palavras e as Coisas. Segundo Foucault, Kant fundou a antropologia como "analítica da finitude" quando encontrou os limites do cogito cartesiano na finitude humana (tanto a finitude da consciência, que não pode saber tudo, quanto os limites físicos do corpo), reportando a possibilidade do conhecimento precisamente a essa limite. Antes do momento kantiano, a filosofia colocava a questão do homem a partir do pensamento do infinito e da verdade como valor absoluto. Não havia um questionamento sobre os limites do conhecimento porque o conhecimento era um dado; o problema se colocava em termos de erros e ilusões: como posso saber se meu conhecimento é real ou se estou sendo enganado pelos meus sentidos ou pela minha consciência?

A partir do momento em que o conhecimento é problematizado a partir das faculdades humanas - sensibilidade, entendimento e razão - coloca-se naturalmente a questão dos limites do conhecimento, tornando-se impossível o conhecimento racional da realidade em si mesma. Ao fundamentar a possibilidade do conhecimento na finitude humana, Kant inaugurou o pensamento moderno, mas ao mesmo tempo fez esse pensamento cair num novo "sono dogmático", substituindo o conhecimento absoluto da metafísica clássica pelo sujeito transcendental como novo absoluto. Como diz Foucault, este é "o enigma kantiano que, após cerca de duzentos anos, enfeitiçou o pensamento ocidental, tornando-o cego a sua própria modernidade".[20] Foucault quer apreender o significado total do corte kantiano, sua profunda radicalidade, mas ao mesmo tempo criticar o impensado da crítica kantiana, o seu momento dogmático, o resíduo de credulidade que ele preservou e transmitiu para todo o pensamento moderno.

Para entender isso, voltemos um pouco atrás na cronologia da obra de Foucault. Quando defendeu sua tese de doutorado Histoire de la folie à l´âge classique, Foucault devia escolher um outro tema como objeto de uma tese complementar, pois o sistema de ensino francês exigia duas teses para o doutoramento. Ele fez então uma tradução crítica da Antropologia de Kant - obra até então inédita em francês -, com uma introdução de mais de cem páginas. As duas teses foram defendidas com sucesso em 1961, sob orientação de Georges Canguilhem. A tradução de Foucault foi publicada em 1964, mas sem sua introdução, que não foi publicada até hoje, fazendo parte do espólio do autor.[21]

Essa Introdução, com a qual Foucault iniciou sua obra, é fundamental para entendermos o papel da crítica kantiana na arqueologia. Recorreremos aqui aos comentários sobre a Introdução feitos por Ricardo Terra, para esclarecer o papel de Kant na ruptura da modernidade.[22] Ricardo Terra diz: “A Introduction à l´antropologie de Kant é o esboço parcial de uma obra que visaria criticar as antropologias filosóficas contemporâneas”.[23] Conforme Terra, Foucault analisou as diversas versões da antropologia de Kant, para compará-las com a redação das três críticas (Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica do Juízo), nesse sentido “Kant afirma que as três perguntas O que posso saber?; O que devo fazer?; O que me é lícito esperar? estão relacionadas a uma quarta, O que é o homem?[24]. Se, como sabemos, as três questões das críticas se traduzem respectivamente como a procura do limite da razão, da extensão do entendimento e das fontes da sensibilidade, Foucault conclui que a quarta questão completa as três questões críticas, fechando seu círculo, e assim, produz uma contradição, pois o fundamento último das críticas é ele próprio empírico e não crítico: "De um lado, a Crítica considera a Antropologia apenas como empírica; de outro, a Antropologia, apesar de retomar a articulação das faculdades da Crítica, não faz desta o fundamento daquela [...] a Antropologia repete a Crítica".[25]

Há contradição entre crítica e antropologia, entre a necessidade de criticar todo conteúdo do conhecimento, remetendo-o à universalidade do sujeito transcendental e a necessidade oposta de embasar a crítica numa antropologia empírica, ou seja, no que é o homem em sua essência. Esta contradição retoma o problema do fundamento recíproco da liberdade e da natureza em Kant. Segundo Foucault:

[...] a Antropologia é conhecimento do homem, em um movimento que o objetiva, no nível de seu ser natural e no conteúdo de suas determinações animais: mas ela é conhecimento do conhecimento do homem, num movimento que interroga o sujeito sobre ele mesmo, sobre seus limites, e sobre aquilo que ele autoriza no saber que dele se tem .[26]

Já está aqui delineado o pensamento antropológico, tal como seria depois analisado na última parte das Palavras e as coisas, sobre a analítica da finitude. Baseado nessa interpretação do pensamento kantiano, Foucault enceta sua crítica às antropologias filosóficas, ou seja, a todas as filosofias que pretendem dizer o que é o homem em sua essência, como comenta Terra: “O contra-senso básico é querer que a antropologia faça o papel de crítica. Partindo de um campo de positividades, tem-se a pretensão de fundar as ciências humanas, perdendo-se assim a dimensão crítica do limite”. [27] Podemos agora compreender que a tese sobre Kant tenha fornecido a argumentação para a crítica do pensamento antropológico na segunda parte das Palavras e as coisas.

1.2. Crítica e modernidade

Dando um salto no tempo, notemos que mais de vinte anos depois da tese, em 1983, Foucault retoma a questão da crítica kantiana, para desta vez lhe dar um conteúdo mais positivo. Ressaltando a ligação estreita entre Kant e a modernidade, Foucault ressalta a permanência desde Kant da obrigação da crítica, da crítica como atitude:

[... ] se a filosofia moderna, tanto a do século XIX, como a do século XX, deriva em grande parte da questão kantianaWas ist Aufklärung?”, isto é, se admitimos que a filosofia moderna teve entre suas funções principais, a função de se interrogar sobre o que foi este momento histórico no qual a razão pode aparecer sob sua forma “maior” e “sem tutela”, a função da filosofia do século XIX consiste, então, em perguntarmos o que é este momento no qual a razão acede à autonomia, o que significa a história da razão e qual valor devemos conceder à dominação da razão no mundo moderno através das três grandes formas do pensamento científico, da aparelhagem técnica e da organização política .[28]

Na genealogia da atitude crítica, feita por Foucault em seus últimos textos, a pergunta kantiana pelos limites da razão ganha uma forma histórica a partir do século XIX, o século da história. Na tradição francesa, a crítica assume a forma de uma interrogação sobre a história da razão científica, papel crítico cumprido pela escola bachelardiana na epistemologia francesa, da qual Foucault se reconhece herdeiro. Foucault vê a crítica como uma “história da verdade” - concebida como a entrada da razão na ordem do tempo.

Mas a leitura que Foucault faz de Kant é muito específica, pois ele se opõe sistematicamente aos pressupostos das filosofias do sujeito, como a fenomenologia, que reclamam a herança kantiana. Há permanência da questão crítica, não da doutrina kantiana do sujeito transcendental, o que implica inversamente, que não se reduza o pensamento kantiano à filosofia do sujeito. Se o que Kant fez foi uma “crítica racional da racionalidade”[29], então Foucault também pode ser considerado um herdeiro do kantismo. “O que me interessou [...] eram justamente as formas de racionalidade que o sujeito humano aplicava a si mesmo”.[30] Nas Palavras e as coisas, este objetivo aparecia na forma da questão: “a que preço pode-se problematizar e analisar o que é o sujeito que fala, trabalha e vive? É por isso que tentei analisar o nascimento da gramática geral, da história natural e da economia”.[31] Não se trata apenas de uma história epistemológica, mas de uma verdadeira crítica da razão, para a qual não basta determinar as condições de possibilidade da experiência do lado do objeto, é preciso também determinar sob que condições um saber sobre o sujeito é possível. E essas condições só podem ser históricas. O sujeito não é um fundamento, nem um dado prévio para o conhecimento, ele é constituído e não constituinte, contingente e não absoluto. O sujeito, portanto, tem uma história. Este é o impensado da crítica kantiana.

Em seu comentário sobre o texto "Was ist Aufklärung?" - um dos opúsculos de Kant sobre a filosofia da história -, Foucault esclarece o que entende por modernidade: "Ao me referir ao texto de Kant, eu me pergunto se não poderíamos considerar a modernidade mais como uma atitude do que como um período da história [...] Um pouco, sem dúvida, como o que os Gregos chamam de um ethos".[32] Definindo o que entende por modernidade e colocando-se a si próprio como herdeiro desta modernidade e do iluminismo kantiano, Foucault quer se distinguir das filosofias pós-modernas e responder à acusação de ser ele um dos fundadores dessas filosofias[33]. Foucault reitera: "[...] o fio que pode nos ligar desta maneira à Aufklärung não é a fidelidade a elementos de doutrina, mas a reativação permanente de uma atitude; isto é, de um ethos filosófico que se poderia caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico " .[34]

Se o corte epistemológico kantiano não pode ser superado é porque ele implica a necessidade para o pensamento crítico de reatualizá-lo permanentemente, produzindo sempre novas rupturas, encontrando sempre novos objetos para a crítica. Reconhecendo-se numa certa herança kantiana, Foucault quer dar legitimidade à pesquisa arqueológica-genealógica, vista como uma crítica da racionalidade nas suas formas históricas. Este fundamento kantiano da obra de Foucault, embora só tenha sido explicitado nestes últimos textos, está presente em toda a sua obra, da História da Loucura ao último curso sobre o dizer a verdade nos cínicos gregos, funcionando como um fio condutor. Em alguns de seus últimos textos, Foucault realiza uma “genealogia da atitude crítica”, entendendo-a como a “arte da inservidão voluntária”, da “indocilidade refletida”. Vista dessa maneira, “a crítica teria essencialmente por função o de dessujeitamento no jogo do que se poderia chamar, numa palavra, a política da verdade”.[35]

Não obstante, o estatuto da crítica em Foucault permanece problemático, principalmente por não haver mais a separação kantiana entre as faculdades – sensibilidade e entendimento -, constituindo uma crítica que é ao mesmo tempo empírica e transcendental, pois os conteúdos históricos valem para ela como condição de possibilidade. É uma crítica onde a noção de limite não se confunde com a negação ou com a contradição. Pretendemos, ao longo deste livro, analisar alguns dos componentes desse problema, mas somente na medida em que forem imprescindíveis para a compreensão da fundamentação da genealogia como método histórico.

Essa questão da crítica e do kantismo está presente desde os seus inícios da obra de Foucault e a percorre de ponta a ponta. É preciso, contudo, abordar também as diferenças entre o criticismo kantiano e sua releitura em Foucault. Desde a História da Loucura, publicada em 1961, revela-se na obra de Foucault a intenção de fazer uma crítica da racionalidade ocidental a partir de várias figuras que representam o "outro" da razão: loucura, doença, morte, crime, sexualidade são entendidas como “experiências-limite” a partir das quais a razão ocidental constituiu negativamente sua identidade. No Prefácio à História da Loucura, Foucault pretende realizar uma história da razão pelo avesso: “fazer uma história dos limites com os quais uma cultura rejeita algo que será para ela o exterior”.[36] Numa entrevista da mesma época, esse projeto é assim descrito:

Me pareceu interessante tentar compreender nossa sociedade e nossa civilização através de seus sistemas de exclusão, de rejeição, de recusa, através daquilo que ela não quer, seus limites, a obrigação na qual ela se encontra de suprimir um certo número de coisas, de pessoas, de processos, o que ela deve deixar cair no esquecimento, seus sistemas de repressão-supressão . [37]

A arqueologia é aqui entendida como história subterrânea da racionalidade, como escavação dos subsolos, cuja função essencial é revelar as origens históricas da racionalidade aplicada ao homem enquanto objeto de saber e alvo de técnicas políticas de dominação. Porém, esta crítica não se realiza mais a partir da figura kantiana do “tribunal da razão", responsável por estabelecer o critério legítimo de uso da razão. Agora é a partir da própria pesquisa histórica - documental, empírica, concreta - que a crítica da racionalidade se realiza, tornando-se uma história crítica da cultura. Ela diverge, portanto, dos quadros da filosofia tradicional. Configura-se uma relação completamente diferente entre a filosofia e a história: não se trata mais de submeter o processo e o material histórico à lógica do conceito, mas de partir do próprio documento histórico e das práticas sociais e culturais concretas a que o documento remete para empreender uma crítica da razão.

No primeiro Prefácio à Crítica da Razão Pura (1781), Kant utiliza a metáfora da genealogia para criticar a pretensão da “rainha” metafísica de ser uma ciência, mostrando que ela não deriva das mais altas faculdades humanas, mas do senso comum e do preconceito: “Embora essa suposta rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experiência comum e, por isso, com justiça, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigências, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada falsamente e, assim, a metafísica continuou a afirmar as suas pretensões [ ¼ ]”.[38]

Noutro trecho do texto aparece a figura do “tribunal da razão”, responsável por estabelecer o uso legítimo ou ilegítimo do conhecimento. A tarefa da razão, diz Kant, é “a do conhecimento de si mesma e da constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunções infundadas; e tudo isto, não por decisão arbitrária, mas em nome das suas leis eternas e imutáveis. Esse tribunal outra coisa não é que a própria Crítica da Razão Pura”.[39] Como vemos, Kant substitui o absoluto da metafísica pelo absoluto da ciência. O projeto de Foucault é, ao contrário, o de suspender a legitimidade da própria ciência.

Kant criticou tanto a tradição racionalista, quanto a tradição empirista, por acreditarem na existência de uma realidade em si mesma (a coisa-em-si), fazendo afirmações infundadas sobre a essência da realidade. Toda afirmação sobre a realidade em si mesma, sobre a sua essência, é uma afirmação metafísica e, portanto, é um uso ilegítimo da razão, pois ultrapassa o limite da experiência possível. Em vez de perguntar se o conhecimento deriva dos sentidos ou da razão, a filosofia transcendental se questionou sobre as condições de possibilidade do conhecimento. Fundando a filosofia transcendental, Kant quis determinar as condições formais que tornam possível o conhecimento e a experiência, tendo encontrado essas condições no sujeito universal. A filosofia transcendental não é conhecimento de objetos, mas conhecimento sobre o modo como conhecemos as coisas, investigação sobre a natureza do ato de conhecer. Nisso consiste a revolução kantiana na história da filosofia. Os objetos do pensamento não estão na própria realidade, mas no intelecto que prescreve suas leis à realidade. Para Kant, não se deve partir do objeto a conhecer, mas do sujeito que conhece. Porém, esse sujeito não se confunde com o indivíduo ou a natureza humana, ele remete à unidade da razão humana, que se mantém una face à multiplicidade dos objetos do conhecimento. Com a filosofia transcendental de Kant, a função da filosofia deixa de ser a de especular sobre o supra-sensível e passa a ser a de esclarecer a natureza do próprio entendimento humano.

Para Foucault, a tarefa específica da filosofia crítica é a reflexão sobre os limites, entendidos não como a fronteira intransponível do conhecimento, a da experiência possível, mas como a transgressão necessária, como o rompimento radical com os hábitos de pensamento estabelecidos. Daí a divergência entre Foucault e Kant quanto ao sentido da noção de limite:

A crítica é a análise dos limites e a reflexão sobre eles. Mas, se a questão kantiana era de saber a quais limites o conhecimento deve renunciar a ultrapassar, me parece que a questão crítica hoje deve ser revertida em questão positiva: no que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e devida a obstáculos arbitrários. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida na forma da limitação necessária numa crítica prática na forma do ultrapassamento [ franchissement] possível . [40]

A noção de limite é vista por Foucault de forma oposta à de Kant. Foucault põe de cabeça para baixo a crítica kantiana ao renunciar ao sujeito universal, substituindo as condições formais de possibilidade da experiência pelas condições históricas e, portanto, sempre variáveis e contingentes, de possibilidade do pensamento. Ele acrescenta que a crítica, na sua concepção, "[¼] não busca tornar possível a metafísica enfim tornada ciência; ela busca relançar tão longe e tão largamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade".[41]

A crítica deixa de ser idealista para orientar-se para a materialidade da história, "[¼] ela é genealógica na sua finalidade e arqueológica no seu método".[42] As duas tarefas não se separam, são complementares, de modo que poderíamos falar numa arqueo-genealogia. A crítica é arqueológica em seu método por tentar ser uma descrição pura de "acontecimentos discursivos", uma "análise diferencial de discursos-objetos"[43], neutra e exterior, mantendo todo sentido e valor em suspenso, "entre parênteses". Ela é genealógica por ser uma forma de desmistificar as pretensões da razão, denunciando o que está por trás dos valores fundamentais da cultura ocidental (razão, sujeito, autoridade, justiça), seguindo o modelo da Genealogia da Moral de Nietzsche.

Concluímos que o criticismo de Foucault constitui na tentativa de síntese entre o formalismo das condições de possibilidade e um historicismo radical, de modo que a crítica torne-se desmistificação e transgressão permanente, em vez de apenas legitimar o que já existe. Poderíamos dizer que Foucault faz a crítica da política da verdade com Kant numa mão e Nietzsche na outra, procurando uma síntese (talvez impossível) entre os dois lados.

2. Os quatro conceitos críticos fundamentais

Neste item explicitamos a articulação dos quatro conceitos fundamentais da arqueologia (descontinuidade, acontecimento, a priori histórico e epistéme), mostrando como esses conceitos nos fornecem os pressupostos filosóficos e metodológicos fundamentais do pensamento foucaultiano. A inversão do primado do contínuo pelo descontínuo; a inversão da relação entre estrutura e acontecimento; a substituição do a priori formal pelo a priori histórico e a definição de epistéme como sistema relacional aberto são procedimentos que visam reintroduzir a historicidade na análise dos discursos - dimensão que havia sido excluída pelo acento dado à sincronia e a estrutura fechada no estruturalismo francês. Esses conceitos respondem à necessidade de encontrar um terceiro nível, entre a análise lógica e ahistórica do discurso, feita pelos estruturalistas, e a análise empírica e intencional que reduz o discurso ao sentido e à intenção do sujeito consciente, típica da tradição fenomenológica. Este terceiro nível poderia fazer a mediação entre a racionalidade do discurso e a contingência da história.

Em seguida, explicitaremos a significação geral da ruptura da modernidade para a história do pensamento, quando a metafísica da representação dá lugar à antropologia como fundamento do conhecimento humano. Essa ruptura é absolutamente essencial para se compreender a Genealogia, que repete a análise do mesmo corte histórico num registro não mais epistemológico e discursivo, mas na dimensão das práticas e do poder. A delimitação precisa do momento em que nasceram a economia, a biologia e a lingüística modernas descreve a face positiva do acontecimento. A análise do pensamento antropológico descreve a face crítica do acontecimento. O que está em jogo é a crítica à representação e à subjetividade moderna, não uma crítica formal e abstrata, mas uma crítica que utiliza a história concreta na sua positividade como seu instrumento fundamental.

Devemos ressaltar a importância das Palavras e as coisas para se compreender todo pensamento foucaultiano. Embora, aparentemente esta obra esteja o mais distante possível de que viria a ser a genealogia do poder (nela não há referência à instituição, às relações de poder, ao corpo, á política, etc, mas apenas uma espécie de análise estrutural de três domínios empíricos), - na verdade, sem esse livro, não compreenderemos quais os pressupostos e as condições de possibilidade que permitiram que o projeto genealógico se constituísse. A análise da ruptura da modernidade e de todas as suas conseqüências, tanto para as ciências empíricas, quanto para a filosofia e principalmente uma nova concepção da temporalidade histórica, serão o solo positivo sobre o qual a genealogia do poder se fundará. A teoria arqueológica do discurso é o instrumento metodológico fundamental da genealogia e essa teoria não se confunde com as teorias estruturais e lógicas do discurso, que o reduzem a um sistema inteiramente fechado.

Como analisaremos detalhadamente abaixo, as condições de possibilidade (o a priori histórico) não se referem a todos os discursos que são possíveis numa época histórica, pois os discursos estão sujeitos a uma seleção, a uma estratégia discursiva, que determina suas condições de existência. Se a arqueologia analisa em termos estruturais a forma, em sua coerência interna, que os discursos assumiram ao longo do tempo, a genealogia analisa a formação dinâmica desses discursos, determinando positivamente segundo que estratégia eles puderam se constituir. Assim, a condição de possibilidade do método genealógico foi dada pela análise da ruptura da modernidade nas P alavras e as coisas e pelo desenvolvimento da teoria arqueológica do discurso na A rqueologia do saber. Sem esse background teórico e crítico, não chegaríamos a entender a significação integral da genealogia como método histórico.

2.1. Descontinuidade

Não é fácil estabelecer o estatuto das descontinuidades para a história em geral. Menos ainda, sem dúvida, para a história do pensamento [...] Que quer dizer, de um modo geral: não mais poder pensar um pensamento? E inaugurar um pensamento novo?[44]

Essa é a questão fundamental das Palavras e as coisas, mas para a qual não se encontra uma resposta, limitando-se à tarefa de descrição empírica das descontinuidades, entendida como preliminar a uma verdadeira explicação teórica. A arqueologia parte da descontinuidade como pressuposto empírico, positivo, ou seja, ela parte da constatação do fato de que o pensamento está sempre recomeçando, não se subordinando a nenhuma necessidade imanente, nem a um progresso da racionalidade, nem a nada que pudesse restituir uma continuidade de sentido perante o fato positivo da descontinuidade. Mas a descontinuidade e, logo, o fato de que há mudança, de que o pensamento sempre recomeça, não pode ser explicada, senão recorrendo a uma genealogia do pensamento, que colocaria em questão sua origem e finalidade, descortinando nessa dimensão genética o sentido de uma época. Nesse sentido há apenas indícios de uma explicação, que podemos tentar compreender:

O descontínuo - o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo - dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de pensar desde a origem .[45]

O questionamento começa com o “estatuto das descontinuidades”, perguntando como ocorre o fim de um sistema de pensamento e o início de outro: supondo a constatação da ruptura, o fato da descontinuidade, o que Foucault procura é como relacionar os fatores externos ao movimento da história do pensamento, de forma que a descontinuidade possa ser explicada. A questão será explicitada somente mais tarde na Arqueologia do saber: rejeitados conceitos como os de totalidade cultural, espírito da época, a idéia de um horizonte de sentido unitário e as relações simplistas de expressão, influência, causa/conseqüência e outras semelhantes (todas relacionadas á história como continuidade), o que sobra para explicar a ruptura? No trecho citado, Foucault descreve o porquê da ruptura como uma "erosão que vem de fora" ou uma expressão mais enigmática: “um espaço que está do outro lado para o pensamento, mas onde ele não cessou de pensar desde a origem”. Pressupondo que o pensamento não progride por uma racionalidade intrínseca, nem pelo jogo de opiniões de uma época, nem tampouco pelo movimento das infra-estruturas de uma sociedade, seriam, contudo, fatores externos ao próprio pensamento que explicariam os seus movimentos. Então por quê Foucault restringe-se em suas análises à comparação entre discursos teóricos, em vez de explicar a sua produção? Por quê ele não enfrenta o problema da causalidade histórica?

Analisemos com mais detalhe o trecho citado acima. Em primeiro lugar, nele proliferam as metáforas espaciais: “erosão..., de fora..., espaço..., do outro lado...”, tentando apreender o movimento histórico do pensamento, seu fluxo, através de sua visualização espacial. Mas a palavra origem não está na mesma família visual, mas se opõe a todas as outras, de modo que a erosão se opõe à origem do pensamento: a erosão, o "de fora", o externo, descrevem a ruptura do pensamento, numa relação orientada de fora para dentro; já a origem, o começo, a fonte, a gênese remetem o pensamento ao que lhe seria mais íntimo, mais interno, mas que contudo se encontra fora de si mesmo. De forma que se chega à conclusão de que o pensamento está ao mesmo tempo dentro e fora de si mesmo: a erosão que o corrói do exterior é justamente o espaço em que ele pensava desde a origem. A razão de ser do pensamento é dada por uma alteridade exterior a ele. Isto não esclarece muito, mas guardemos essa relação interno/externo, e vejamos novamente o que diz Foucault:

Mas talvez não seja ainda o momento de formular o problema; é preciso provavelmente esperar que a arqueologia do pensamento esteja mais assegurada, tenha melhor assumido a medida daquilo que ela pode descrever direta e positivamente, tenha definido os sistemas singulares e os encadeamentos internos aos quais se endereça, para tentar fazer o contorno do pensamento e interrogá-lo na direção por onde ele escapa de si mesmo. Bastará, pois, por ora, acolher essas descontinuidades na ordem empírica, ao mesmo tempo evidente e obscura em que se dão .[46]

Mas Foucault recua e limita a análise da ruptura à sua descrição empírica “ao mesmo tempo evidente e obscura”: evidente porque apreendida na superfície, no manifesto, no visível dos discursos tal como foram efetivamente enunciados e não no seu significado profundo ou no seu sentido oculto; obscura porque os saberes empíricos são cobertos ou marcados pela ilusão retrospectiva que faz crer na racionalidade ideal, fora da história, do discurso científico, na sua continuidade e identidade durante o tempo - mascaramento que é tarefa da arqueologia criticar.

A análise do discurso deve ser feita, portanto, na exterioridade, um dos conceitos fundamentais de Foucault, de que devemos agora dar uma primeira abordagem. A exterioridade permite a Foucault ao mesmo tempo escapar da referência obrigatória a um sujeito constituinte do discurso e do problema da origem ou da causalidade do discurso no tempo. Ele também rejeita a suposição de um sentido primeiro, um não-dito, um discurso mais fundamental que o manifesto, implicando sua continuidade subterrânea, inconsciente no tempo.

Trata-se de uma exterioridade paradoxal, que não se opõe a nenhuma interioridade, é antes planura, superfície, visualidade pura. Definida desta forma, a exterioridade tem um duplo aspecto. É a atitude do arqueólogo em relação ao seu objeto, como o olhar distanciado do etnólogo aplicado a sua própria cultura, aos próprios discursos que compõe sua história - é a relação externa com os discursos históricos o que permite descrevê-los objetivamente. O segundo aspecto da exterioridade diz respeito às condições históricas de possibilidade do pensamento: traçar suas fronteiras, seus limites externos, dividir em camadas, isolar níveis, definir sistemas de exclusão. Nesse sentido, a exterioridade parece recusar a pertinência do questionamento da origem do pensamento, parece dispensar toda preocupação com questões de gênese.

O que está em jogo aqui é a questão da causalidade histórica. Foucault não pode admitir as relações simplistas de causa e conseqüência, supostas por um modelo de historicidade continuísta (em termos de influência, espírito da época, etc), nem tampouco a versão marxista da causalidade histórica da determinação ou sobredeterminação da superestrutura (os discursos) pela infra-estrutura (os fatores sócio-econômicos, o modo de produção). Mas, também não pode ficar preso à positividade do descontínuo, ao fato discursivo em sua relatividade. A dimensão genética está tão presente na arqueologia quanto a dimensão positiva, empírica, mas ela é deixada "entre parênteses", provisoriamente excluída da análise que neste momento deve ser o mais empírica e o mais historicista possível, sob o risco de cair seja numa hermenêutica do sentido (caminho que Foucault rejeita).

Pelo que entrevemos no trecho sobre a erosão e a origem do pensamento, Foucault opta, a princípio, por uma causalidade circular, de mútua determinação entre os fatores externos ao pensamento e seu encadeamento interno durante o tempo, mas a dimensão externa é definida apenas por exclusão, a dimensão genética existe por sua própria ausência no percurso analítico. Porém, essa relação ainda seria problemática, pois se mantém uma relação de exterioridade entre o discursivo e o extradiscursivo (os fatores externos); ou seja, devido à suposição da autonomia do discurso, não haveria possibilidade de comunicação direta entre o discurso e o que lhe é externo.

E voltamos aqui ao problema da erosão e da origem: se os fatores externos ao pensamento que erodem de fora o discurso, se são o próprio espaço onde ele pensava desde a origem, isto significa que o pensamento está ao mesmo tempo dentro e fora de si mesmo, ou seja, não há diferença entre o externo e o interno, a exterioridade não se opõe mais a nenhuma interioridade, o pensamento passaria a ser uma dimensão única que abarca no seu processo tudo o que lhe é externo. A conclusão paradoxal é que a origem do pensamento está fora dele mesmo e sua erosão, sua ruptura ocorre de dentro, ou melhor, que a ruptura só pode ser sentida na interioridade do discurso porque é empírica, factual, enquanto a face real do acontecimento é da ordem da gênese, mas de uma gênese ao mesmo tempo não empírica e não originária - dimensão imponderável, que está para além de qualquer medida empírica. A continuidade entre as duas dimensões (empírica e genética) pode ser afirmada porque não há um ponto que separe a dimensão do interno e do externo, uma dimensão é imanente à outra - ou para usar uma metáfora espacial, a origem do pensamento e suas determinações externas se relacionam como os lados interno e externo na fita de Moebius, num processo contínuo e infinito em que o interno transforma-se no externo e vice-versa sem interrupção.

Neste trecho, Foucault já distingue as duas questões que pautarão suas obras posteriores. A arqueologia se desdobraria em duas tarefas, para realizar seu percurso: inicialmente “descrever positivamente”, definir os “sistemas singulares e encadeamentos internos [...] para fazer o contorno do pensamento e interrogá-lo na direção em que ele escapa de si mesmo”. Assim, detendo-se no encadeamento interno do próprio pensamento, nas suas relações discursivas, no seu aspecto empírico e positivo, delimita-se com precisão, de dentro para fora, a esfera da produção do próprio pensamento. Bastará então, por enquanto, "acolher essas descontinuidades na ordem empírica em que se dão". A segunda tarefa da arqueologia seria o questionamento do pensamento a partir do exterior, do que não é pensamento, da sua origem, da sua causalidade, dos fatores que fazem com que ele mude e assim, explicar a descontinuidade. O estatuto desta origem permanece obscuro e indeterminado, por isso a ruptura não pode ser explicada ainda. Esses fatores externos serão chamados na Arqueologia do saber de “extradiscursivos”.

Desenha-se, assim, o caminho para o qual se direciona o método de Foucault: partindo da delimitação das descontinuidades nas configurações discursivas em que se manifestam, por um processo de delimitação progressiva, se atingiria a camada exterior ao pensamento, "onde contudo ele não cessou de pensar desde a origem". Atingido este limite, o sentido, a direção da análise se inverteria, partindo do exterior para o interior do pensamento.

Essa forma de refletir sobre o pensamento como relação circular entre a gênese e a positividade tem relação com a reflexão de Heidegger, embora Foucault rejeite o principal pressuposto da ontologia hermenêutica: a continuidade de sentido durante o tempo que nos dá acesso à experiência do ser[47]. Essa questão é retomada na Introdução Geral ao Uso dos Prazeres, segundo volume da História da Sexualidade. Neste texto, esta temática da história do pensamento é entendida como o trabalho reflexivo do pensamento sobre si mesmo, onde se trata "de saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente".[48] Este questionamento se distancia da abordagem heideggeriana porque a história do pensamento não se liga à questão da continuidade do sentido do ser, não se trata de explicitar o não-dito originário sedimentado na historicidade do ser, mas de eliminar qualquer resíduo impensado para instalar a descontinuidade no seio do próprio pensamento. Como diz Deleuze:

Que tudo seja sempre dito, em cada época, talvez seja esse o maior princípio histórico de Foucault. [¼] cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciação. Nunca existe segredo, embora nada seja imediatamente visível, nem diretamente legível.[49]

2.2. Acontecimento

Como ocorre que o pensamento se desprenda daquelas plagas que habitava outrora - gramática geral, história natural, riquezas - e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo mesmo que, menos de vinte anos antes, estava estabelecido e afirmado no espaço luminoso do conhecimento?[50]

Novamente a questão da mutação: explicar a descontinuidade. O dado novo é o conceito de acontecimento, a que evento se deve relacionar a radical mudança perceptiva que faz com que o “ser das coisas” não seja mais o mesmo, com que as proposições, técnicas, etc, reconhecidas como verdadeiras passem de súbito a ser falsas; ou seja, a mudança do próprio “regime de verdade” pelo qual numa época se afirma a crença no verdadeiro. Foucault caracteriza assim a questão da ruptura entre a Idade Clássica e a Idade da História, que no espaço de vinte anos, de 1775 a 1795, mudou totalmente a configuração do saber. Enquanto determinação negativa, a ruptura é definida como descontinuidade, enquanto determinação positiva (enquanto “positividade”), ela é definida como acontecimento; a descontinuidade seria a forma, o acontecimento o conteúdo da mudança. A análise da ruptura é feita para três domínios precisos: a transformação da Análise das Riquezas em Economia; da História Natural em Biologia e da Gramática Geral em Filologia. Foucault procura a regularidade que rege a eclosão dos acontecimentos singulares:

[...]


[1] UP, 13.

[2] Id., 14.

[3] Kant, Crítica da Razão Pura, A XII.

[4] Deleuze , Foucault, p. 128.

[5] Deleuze, Conversações, p. 119.

[6] IP, 11.

[7] IP, 10.

[8] IP, 35.

[9] Devemos observar que toda uma vertente da sociologia contemporânea, a sociologia das práticas, já não compartilha mais daquela visão de sociedade, defendida ainda pela história social. Autores como Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron e Robert Castel partem desta mesma concepção da prática como uma ratio para entender a dinâmica social. Cf. Bourdieu, P. Raisons pratiques, Paris, Minuit, 1989.

[10] IP, 44-45.

[11] IP, 56.

[12] DE, IV, 631-32.

[13] Filósofos como Jürgen Habermas e John Rawls reivindicam também a herança kantiana, defendendo a idéia de valores e normas universais, encarnados nas instituições do Estado democrático de direito. Foucault, porém, rejeita qualquer valor universal, além de ter feito uma crítica radical do “monstro frio”, o Estado moderno, em seus escritos sobre a biopolítica e a razão de Estado (cf., entre outros, os cursos DS, STP e NB). Assim, é preciso antes determinar que leitura Foucault faz de Kant, para entender qual o sentido desta filiação.

[14] Não deixa de ser sugestivo que Foucault tenha começado sua obra fazendo uma interpretação da Antropologia de Kant, e a tenha terminado, ou interrompido, por uma reflexão sobre o texto “Was ist Aufklãrung?” de Kant. O “enigma kantiano”, como Foucault o chama numa de suas entrevistas, percorre seu pensamento de ponta a ponta, como um fio condutor subterrâneo.

[15] Une histoire restée muette, junho de 1966, DE, II, 546.

[16] No primeiro prefácio à Crítica da Razão Pura, Kant diz: “A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião, por sua santidade e a legislação, por sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadamente suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame” (Kant, Crítica da razão pura, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1997, p. 5)

[17] Idem, 547-548.

[18] Como diz Canguilhem: “[...] o termo arqueologia diz bem o que ele quer dizer. É a condição de uma outra história, na qual o conceito de acontecimento é conservado, mas onde os acontecimentos afetam conceitos e não homens” (cf. “Mort de l’homme ou épuisement du Cogito? “in: Critique, 24 (1967), p. 607.

[19] Deleuze foi o primeiro a reconhecer e dar importância ao kantismo de Foucault, analisando sua arqueologia a partir de dois princípios transcendentais: as visibilidades e os enunciados, o visível e o dizível: “Não é uma história das mentalidades, nem dos comportamentos. Falar e ver, ou melhor, os enunciados e as visibilidades, são elementos puros, condições a priori sob as quais todas as idéias se formulam num momento e os comportamentos se manifestam. Essa busca das condições constitui uma espécie de neo-kantismo característico de Foucault. Há, entretanto, diferenças essenciais em relação a Kant: as condições são as da experiência real, e não as de toda experiência possível [...]; elas estão do lado do “objeto”, do lado da formação histórica, e não de um sujeito universal (o próprio a priori é histórico); ambas são formas de exterioridade” (Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 69).

[20] DE, I, 547.

[21] Cf. Kant, E. - Antropologie du point de vue pragmatique, Paris, Vrin, 1964. O manuscrito da Introdução se encontra hoje no Centre Michel Foucault, em Paris.

[22] Cf. «Foucault leitor de Kant: da antropologia à ontologia do presente», in: Terra, Ricardo Ribeiro - Passagens, ensaios sobre a filosofia de Kant (tese de livre-docência), USP, 1998.

[23] Idem, 146.

[24] Idem, 151.

[25] Idem, 154.

[26] Foucault, Apud Idem, 157.

[27] Idem, 157.

[28] Cf. Structuralisme et poststructuralisme (entrevista), 1983, DE, IV, 438.

[29] Idem, 440.

[30] Idem, 441.

[31] Idem, 442.

[32] Qu´est-ce que les Lumières?, 1984, DE, IV, 562.

[33] Cf. a esse respeito a crítica de Habermas «As ciências humanas desmascaradas pela crítica da razão: Foucault» in : O discurso filosófico da modernidade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990, pp: 225-249.

[34] Idem, 571.

[35] Foucault, “Critique et Aufklãrung”, in: Bulletin de la Société française de Philosophie, t. LXXXIV (1990), p. 39 (texto de uma conferência proferida em 1978, não retomado nos Dits et Écrits).

[36] Histoire de la folie, p. 9.

[37] DE, II, 158.

[38] Kant - Crítica da Razão Pura, A X.

[39] Id., A XII.

[40] DE, IV, 574.

[41] Id.

[42] Ibid.

[43] AS, 182.

[44] PC, 65.

[45] PC, 65.

[46] PC, 65-66.

[47] Dreyfus tentou fazer essa comparação ponto a ponto entre Foucault e Heidegger, equiparando por exemplo, ser e poder, Seingeschichte e genealogia, a crítica do biopoder e a crítica da era da técnica, mas acaba por concluir que o projeto de Foucault é autônomo e além disso, mais radical que o de Heidegger. Cf. Dreyfus, Hubert L. De la mise en ordre des choses. L´être et le Pouvoir chez Heidegger et Foucault in: Michel Foucault philosophe. Rencontre internationale, Paris, Seuil, 1989, pp. 101-121.

[48] US, 14.

[49] Deleuze, Foucault, p. 63 e 68.

[50] PC, 231.

Ende der Leseprobe aus 238 Seiten

Details

Titel
As metamorfoses da crítica. A trajetória de Foucault entre a Arqueologia e a Genealogia
Hochschule
Universidade de São Paulo;Faculdade de Filosofia
Veranstaltung
History
Note
10,0
Autor
Jahr
2001
Seiten
238
Katalognummer
V308675
ISBN (eBook)
9783668069558
ISBN (Buch)
9783668069565
Dateigröße
1506 KB
Sprache
Portugiesisch
Schlagworte
Michel Foucault, Philosophy, Epistemology, Critique, Archaeology, Genealogy
Arbeit zitieren
Alexandre Alves (Autor:in), 2001, As metamorfoses da crítica. A trajetória de Foucault entre a Arqueologia e a Genealogia, München, GRIN Verlag, https://www.grin.com/document/308675

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