O pensamento contemporâneo é atravessado por paradoxos que desafiam nossas antigas certezas: avanços técnicos convivem com dilemas éticos inéditos, e a globalização ampliou os horizontes do humano sem, no entanto, resolver sua angústia de sentido.
Nesse cenário, a Bioética desponta como linguagem crítica e construtiva, situada entre a razão e o afeto, entre a autonomia e a responsabilidade.
Este ensaio é um convite à reflexão sobre o papel da Bioética em sociedades avançadas de organização complexa.
Partindo de um olhar filosófico e existencial, o texto percorre temas como tempo, instituição, pós-modernidade, ciência e valores, com especial atenção à necessidade de encontrar respostas éticas compatíveis com um mundo em constante transformação. Mais do que um tratado técnico, esta obra propõe uma ética do futuro – baseada na memória histórica, na autonomia do sujeito e no reconhecimento da responsabilidade coletiva.
Uma leitura essencial para profissionais da saúde, estudiosos da ética, formuladores de políticas públicas e todos aqueles comprometidos com o pensamento crítico em tempos de incerteza.
Bioética – uma reflexão para o futuro
Leidimar Pereira Murr1
Abstract
This essay presents a critical and interdisciplinary reflection on the foundations and projections of Bioethics in light of contemporary sociocultural, legal, and technoscientific transformations. In a context marked by the growing institutionalization of everyday life, the expansion of rights based on subjective claims, and the intensification of interventions in matters of life and death, Bioethics emerges as a field capable of mediating the boundaries between what is possible and what is ethically admissible. By proposing ethics not merely as a normative imposition, but as a future-oriented project, the essay highlights the relevance of concepts such as autonomy, responsibility, and temporality, advancing a critical and dialogical approach to the ethical contradictions of our time.
Keywords: Bioethics; Applied ethics; Autonomy; Responsibility; Right to life; Future.
Resumo
Este ensaio propõe uma reflexão crítica sobre os fundamentos e as projeções da Bioética diante das transformações socioculturais, jurídicas e tecnocientíficas do mundo contemporâneo. Em um cenário marcado pela institucionalização crescente da vida cotidiana, pela expansão de direitos a partir de demandas subjetivas e pela intensificação das intervenções sobre a vida e a morte, a Bioética configura-se como um campo de saber e prática capaz de mediar os limites entre o possível e o admissível. Ao reivindicar a ética não apenas como imposição normativa, mas como projeto de futuro, o texto destaca a centralidade de noções como autonomia, responsabilidade e temporalidade, propondo uma abordagem crítica e dialógica diante das contradições éticas do presente.
Palavras-chaves: Bioética; Ética aplicada; Autonomia; Responsabilidade; Direito à vida; Futuro.
Sumário
1. Introdução. 2. Para além da pós-modernidade: o homem contemporâneo. 3. Horizontes da Bioética: reflexões para um mundo em transformação. 4. Considerações finais. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Este texto nasceu como uma aula inaugural da Residência Médica em Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ocorrida em março de 2006 no Hospital Colônia João Machado, a convite do Dr. Salatiel da Silva, fundador e coordenador da Residência Médica em Psiquiatra do Hospital Dr. João Machado, na capital Potiguar, Estado do Rio Grande do Norte. O tema: “Bioética – uma reflexão para o futuro”. O que deveria ser apenas uma aula inaugural da turma que iniciava a especialização em psiquiatria, logo ganhou fôlego próprio. O convite à escuta, feito na ocasião, desdobrou-se em um exercício mais amplo: uma meditação sobre o tempo, sobre as transformações culturais e subjetivas da humanidade, sobre os modos como percebemos o mundo e nos relacionamos com o outro.
A exposição, então oral e circunstancial, foi reelaborada e ampliada para assumir a forma do presente ensaio. Aqui, a linguagem da Bioética é tomada como fio condutor para interrogar os rumos do pensamento contemporâneo, os impasses da racionalidade moderna e as demandas atuais de sentido, vínculo e responsabilidade. O texto mantém o frescor de sua origem falada, mas busca agora oferecer-se como leitura pausada, propícia à meditação e ao debate. Ao assumir a forma de e-book, torna-se também um dos capítulos de uma série mais ampla de reflexões bioéticas, destinadas a leitores inquietos diante dos desafios éticos do nosso tempo.
Mais do que uma exposição teórica, este ensaio propõe uma travessia: entre tempos históricos, entre formas de ver e viver, entre uma ética médica tradicional e os desafios contemporâneos que exigem uma ética ampliada, relacional, atenta à complexidade do humano.
O fio condutor aqui é a Bioética – entendida não apenas como disciplina normativa, mas como linguagem sensível, situada no tempo, voltada para o cuidar, para a escuta e para o reconhecimento da alteridade.
A reflexão que se segue é, portanto, uma proposta de pensar o futuro a partir das marcas do passado e das urgências do presente. Um convite a repensar não apenas o que fazemos, mas como e por que o fazemos, no campo da saúde, da medicina, das relações humanas e da própria vida social.
O texto incorpora ainda um fragmento ficcional original, que retrata simbolicamente o homem pós-moderno – figura que encarna as contradições de nosso tempo e serve como espelho crítico da condição contemporânea. O personagem foi o ponto de partida para situar a Bioética no contexto sugerido. Aos poucos, foi-se cristalizando a relação entre a Bioética e os consensos sociais do mundo ocidental contemporâneo. Enquanto a democracia se estabelece politicamente como espinha dorsal desses consensos, perceptíveis nos Estados constitucionais da atualidade, em outra dimensão da temática, desponta a Bioética como saber institucionalizado.
Assim, o Estado de Direito configura não apenas o arcabouço jurídico-político, mas também permite visualizar o arcabouço ético-moral – ou axiológico – vigente nas sociedades avançadas do mundo ocidental contemporâneo, nas quais o processo de institucionalização alcançou a vida cotidiana de forma ostensiva. Diferentemente das instituições estatais stricto sensu, onde prevalece a obrigatoriedade da coerência, a sociedade – enquanto uma agregação de indivíduos com gostos, predileções e contradições próprios – segue em conflito interno, seja na relação intrapessoal, interpessoal ou intergrupal2, embora – pressupõe-se – tenha atingido consensos mais amplos enquanto coletivo.
Um exemplo que ilustra essa contradição é a emblemática luta feminista americana em sua forma mais difundida: a defesa do direito ao aborto. Enquanto se apoiava no argumento da autonomia – alegando que as mulheres seriam “donas do próprio corpo” –, criticava-se a frieza e a lógica masculina do mundo, acusando-o de favorecer a primazia da autonomia individual sobre o bem comum. Ou melhor, criticava-se o predomínio da linguagem tipicamente masculina dos direitos sobre a linguagem feminina da emoção e do cuidado, recorrendo-se aos próprios termos com que se definia a reivindicação por uma ethics of care, em detrimento do que se denominava “individualismo liberal”3. Um individualismo que, sob a perspectiva atual, decorria de um consenso social muito mais amplo do que se percebia no início da década de 1970.
Apartando-se da conotação negativa que o termo individualismo liberal pode carregar, é precisamente na liberdade – e na tensão entre o individual e o coletivo – que residem não apenas as raízes da ética autonomista, mas também um conjunto de valores que conferem contorno aos Estados democráticos do mundo ocidental em que vivemos. Referimo-nos aqui à ética autonomista, amplamente difundida na atualidade, cuja presença na medicina contemporânea foi notavelmente intensificada pelo movimento feminista, especialmente ao reivindicar a autonomia da mulher na decisão sobre o aborto – marco emblemático desse deslocamento ético.
Por sua vez, os Estados constitucionais contemporâneos, ao garantirem direitos individuais, tornam-se compatíveis com essa ética autonomista, que se coloca como eixo central da Bioética. A crítica ao individualismo liberal cedeu espaço à luta por direitos individuais constitucionalmente assegurados, inserindo o constitucionalismo em uma dimensão que vai muito além de uma mera “bula político-administrativa do Estado”. Nesse contexto, o constitucionalismo estatal revela também sua necessária interseção com as questões pertinentes à Bioética enquanto tema da sociedade global contemporânea. É por isso que, em meio às contradições que permeiam as múltiplas reivindicações atribuídas à Bioética, identificam-se questionamentos sobre valores fundamentais da humanidade e choques axiológicos decorrentes do processo de globalização.
Esse choque de valores nos remete a um momento histórico da Atenas antiga, onde povos, culturas, nações e Estados distintos coexistiam. A confluência de culturas no mesmo território – na antiguidade – corresponde, hoje, à plataforma virtual e às diversas formas de comunicação global, que funcionam como locus do mesmo fenômeno: o surgimento reiterado da necessidade de revisar valores regionais e globais.
Um exemplo marcante foi a condenação de Sakineh Mohammadi Ashtiani à morte por apedrejamento no Irã – fato que, na ocasião, confrontou em tempo real toda a comunidade global, tendo sido amplamente divulgado pela BBC News em 09 de julho de 20104. A despeito dessa prática integrar a tradição islâmica do país – e de tantas outras ocorrências semelhantes ou até mais graves sob determinados pontos de vista –, o questionamento à pena de morte por apedrejamento nunca foi tão enfático quanto naquele momento. A projeção cada vez maior do Irã na arena internacional submeteu seus valores e costumes tradicionais a um teste ético diante do mundo, mobilizando o mesmo universo global ao qual o governo de Ahmadinejad insistia em não admitir pertencer. Condenada à morte por adultério e suposta participação no assassinato do marido, Sakineh foi libertada após intensa pressão internacional. Embora ainda sob forte controle, sua história exemplifica como os valores de cada povo, nação ou Estado são confrontados pelo processo de globalização, desafiando todos diante de uma “nova ordem mundial”.
Os universos da Bioética – muitas vezes não claramente delimitados –compreendem, necessariamente, a práxis social, o universo axiológico, o ordenamento jurídico do país em questão, bem como o universo delimitado pelas possibilidades técnico-cientificas e pelo design político do Estado. Em determinados momentos, a Bioética compartimentaliza o Direito ao tratar da dimensão normativa; em outros, é o Direito, como síntese da dimensão axiológica, que precisa compartimentalizar a Bioética – em um processo contínuo de verificação, análise e formulação de postulados. Isso impõe ao Direito uma expansão de seu significado, que passa, assim como a Bioética, a incluir dimensões técnicas e políticas, sem as quais, em sua fase interpretativa, não poderá responder adequadamente às exigências das sociedades contemporâneas.
Constata-se que as decisões político-institucionais hodiernas: não mais toleram julgamentos morais como justificativa central, nos moldes do passado; emanciparam-se do iluminismo e das verdades científicas como justificativas isoladas; e enfrentam a exigência de ampliar as interpretações constitucionais, conforme as pretensões normativas das sociedades globalizadas.
Após essas considerações iniciais, que buscaram contextualizar a Bioética no tema proposto – “Bioética: uma reflexão para o futuro” –, a associação entre o refletir da Bioética e o futuro mostra-se não apenas pertinente, mas imprescindível.
1. Para além da pós-modernidade: o homem contemporâneo
Para alcançar as contradições, os questionamentos e as reivindicações da atualidade, a reflexão inicia com uma breve descrição do “homem pós-moderno”. Trata-se de um personagem fictício, a quem chamamos de indivíduo –, ou, para melhor dizer, pessoa. Ser chamado de indivíduo já não lhe é suportável. Prefere ser chamado de pessoa. Ele é fruto da pós-modernidade e expressão do mundo contemporâneo; na verdade, um resquício da pós-modernidade projetado sobre a contemporaneidade. Às vezes, é na ficção que melhor se expressa o real. Entre conceitos e análises, um personagem emerge – síntese viva do sujeito pós-moderno. Sua história é breve, mas diz muito
Interlúdio: O homem pós-moderno
Um homem de meia-idade, trajando apenas um calção, descalço; nu da cintura para cima, cabelos displicentemente penteados, mas com um corte moderno, a barba por fazer, de um dia. Embaixo do braço, um romance atual que aborda questões político-econômicas e sociais com a leveza dos acontecimentos cotidianos e prazerosos de seus personagens – em tom de brincadeira.
Este personagem encontra-se em Trancoso, cidade do litoral da Bahia. Chegou há pouco de Paris, onde presenciou o tumulto da sociedade francesa que protestava insatisfeita com o que considerava um retrocesso nas leis trabalhistas. Passou pelo Rio de Janeiro, onde comprou alguns livros e despachou sua mala para sua residência fixa em Natal. De lá, embarcou no primeiro voo para Salvador, onde faria a conexão para Porto Seguro. Em Porto Seguro, alugou um carro e seguiu para Trancoso.
Trazia consigo um laptop, com conexão wireless, um par de chinelos havaianas, duas camisas brancas, de algodão, dois calções, duas cuecas, seu passaporte e o cartão de crédito, além dos livros que comprara no aeroporto do Rio de Janeiro e de Paris. Tudo isso em uma mala bem compacta, que fazia com que ele só tivesse uma bagagem de mão. O celular, ele teve o cuidado de deixar desligado.
Chegando a Trancoso, rapidamente se hospedou em um chalé rústico, com tudo muito simples e que em alguns objetos lembrava a casa de sua bisavó, no sertão da Paraíba. Não fosse o conforto e o requinte da disposição dos objetos, poderia jurar que estava na casa da bisavó.
No dia em que chegou, iniciou a leitura do livro que havia comprado no aeroporto de Paris, e logo adormeceu. Estava exausto.
Na manhã seguinte levantou, tomou um banho quente, vestiu o calção, pegou o romance que começara a ler na noite anterior e, descalço, caminhou até um Bistrô no centro de Trancoso, próximo à Prefeitura.
No Bistrô, escolheu um dentre os vários sucos naturais que constavam no cardápio; alguns até de frutas vindas do norte do Brasil e que devido ao clima não vingavam na região da Bahia. Pediu uma torrada. E enquanto tomava o café da manhã tinha uma sensação de leveza, de bem-estar, de uma liberdade que sentia vir de dentro...
Leu, rindo, algumas passagens do livro e lembrou que dali iria ao mercadinho mais próximo comprar um cabo para o carregador de seu laptop. Precisava dar uma olhada na cotação do dólar e da bolsa de valores, na qual havia investido o dinheiro que herdara do pai falecido; o pai, empresário bem-sucedido, lhe deixara de herança uma indústria que produzia desde eletrodomésticos até guindastes. Após a morte do pai, decidiu vender o negócio e viver da especulação da bolsa. Com uma parcela do dinheiro que dispunha, vivia confortavelmente e viajava; uma segunda parcela era dividida para a manutenção do filho único em universidade francesa e para pagar a pensão da ex-mulher; uma terceira parcela ele reinvestia.
Havia cursado física, ciências políticas, jornalismo e filosofia, e escrevia, como profissional liberal, para alguns jornais, a coluna que abordava temas científicos. Havia se estabelecido profissionalmente no Brasil com o jornalismo científico.
Tinha se proposto a, durante sua estadia em Trancoso, escrever um artigo sobre as novas descobertas da cosmologia e da física quântica. Como todo estudioso, tinha em si um sobejo do iluminismo que buscava por uma teoria final; a relação entre o imensamente grande e inimaginavelmente pequeno parecia prestes a ser decifrada. Que ganhos teve a humanidade com os recentes experimentos do acelerador de partículas realizados na Suíça? Qual o significado da conquista do espaço para o homem contemporâneo? Lembrou que quando criança teve uma fase em que queria ser astronauta. Nesse instante seus pensamentos foram interrompidos pela imagem do filho.
Pensou no filho e lhe veio à mente que ele nunca havia expressado “o desejo de ser alguma coisa”. O filho estudava música e havia cursado biologia; quando o via, nas férias, percebia que ele vestia umas calças rasgadas, compradas em algumas boutiques caras; usava sempre o relógio suíço que ganhara de presente do avô; saía para as baladas e “ficava” com algumas garotas, várias na mesma noite, segundo lhe relatava, indignada, a mãe do rapaz, sua ex-mulher.
Jamais exigira do filho obediência ou submissão a dogmas, crenças, religião, lutas de classe, ou nenhum outro movimento no qual ele próprio havia acreditado ou participado na adolescência. Pelo contrário, havia ensinado ao filho que tudo na vida flui – e, justamente por isso, é perene em sua impermanência. Havia, com o seu conhecimento, inclusive demonstrado como as grandes descobertas da humanidade haviam sido ultrapassadas em um próximo momento. Nem a religião, nem a ciência, nem as grandes teorias filosóficas que haviam levado povos, sociedades e nações a diversas formas de organização político-econômica haviam escapado da sabedoria contemporânea. As muitas sociedades que já existiram decidiram, em determinado momento de sua história, o que consideravam ser a “verdadeira verdade”. “Não há uma verdade absoluta, tudo é relativo”, dizia.
Percebia que o filho se preocupava demasiadamente com o meio-ambiente, as plantas, os animais, a ecologia, a natureza... Essa natureza que se lhes apresentava aqui e agora, com as marcas do progressismo imposto pela modernidade. O filho estava sempre querendo saber o destino que ele, o pai, dava a baterias e pilhas usadas, se as colocava no lixo comum; e quando, envolto em seus pensamentos displicentemente jogava alguma pilha na lixeira da pia, o filho reclamava, dizendo enfaticamente que aquilo não deveria ser feito.
De repente, percebeu que seu filho tinha características que ele próprio jamais tivera, como por exemplo, ser alheio a assuntos que ele tinha um dia levado tão a sério, como sua realização como cidadão que insistia na importância da autonomia, da liberdade de expressão e pensamento, desde que tal não ferisse princípios contratuais, sociais, morais, jurídicos ou políticos. Neste instante, se deu conta de que tais princípios foram, em última análise, também imposições do “pensamento moderno progressista” do qual ele era o resultante. Seu filho não parecia estar muito comprometido e muito certo de tais premissas que, de certa forma, determinaram a organização social e política do mundo em que vivia. Sentiu um aperto no peito e aquela sensação de bem-estar e liberdade que sentia há poucos segundos desapareceu. Sentiu-se prisioneiro do seu tempo; como alguém que havia acreditado em toda a história linear que lhe haviam contado; com isso havia projetado um futuro, onde o sentido da vida estava em lutar, dentro das suas possibilidades, para que as sociedades fossem justas, de acordo com o critério de justiça elaborado por teóricos que, de um momento para outro, haviam sido derrotados pelas evidências. Ele próprio, um dia, bem no início da sua juventude, já havia sido comunista, acreditado na ideologia de uma sociedade igualitária...; dos moldes do comunismo radical às formas mais brandas do socialismo, até chegar aos dias atuais com a certeza de que o respeito à autonomia do indivíduo é um bem maior e só pode se concretizar em sociedades democráticas e liberais.
Vinha-lhe à mente que, enquanto fazia essas reflexões, seu filho se divertia pelas baladas, aproveitava a vida, os anos, os dias, os minutos que marcavam seu relógio suíço. Parecia não se comover com nada do que a história ensinava ou mostrava, como que totalmente alheio a isso. Ocorria-lhe ainda que o filho se utilizava das tecnologias de ponta com tal naturalidade, como se elas sempre tivessem feito parte do mundo; convivia muito bem com o fato de que elas, as tecnologias de ponta, logo seriam descartadas, pois surgiria algo novo para substituí-las; da mesma forma era com suas relações de amizade ou suas relações amorosas: sua vida parecia centrada no presente. Parecia que o futuro lhe chegava através do que vivenciava aqui e agora. As questões atuais eram mais importantes que remoer verdades de um passado ou se debruçar sobre livros e teóricos que especulavam sobre as possibilidades hipotéticas de um futuro que se sentia incapaz de vislumbrar. Intrigava-lhe, porém, que, apesar da aparente indiferença, o filho era capaz de discutir com propriedade sobre os problemas da atualidade, principalmente da relação entre suas ações e os efeitos destas sobre o meio-ambiente; do alcance e limite da tecnologia em seus diversos setores. E, no entanto, não insistia em querer levantar qualquer bandeira política ou impor ideias. Era tranquilo. As certezas que tinha eram só suas, como pessoa, não como indivíduo preso a contratos de qualquer tipo. Frequentava as aulas de música ou navegava pela internet com a mesma serenidade com que ia a uma missa onde fosse celebrada a cerimônia de um casamento, ou a uma festa “rave”, ou que assistia a um show de Madonna...
O personagem acima não é ninguém em particular – e, ao mesmo tempo, representa muitos. Ele carrega em si as marcas do nosso tempo, e é a partir dessa figura simbólica que se pode retomar a reflexão sobre a Bioética enquanto linguagem capaz de restaurar sentido, vínculo e responsabilidade.
O próprio tema sugerido, ao propor “uma reflexão para o futuro”, já enfatiza o deslocamento temporal do foco do pensamento no decorrer da “história da humanidade”5. Se, em termos gerais, é possível afirmar que o pensamento humano esteve, outrora, mais voltado às experiências passadas do que ocorre hoje – e que, na dias atualidade, as simulações de futuro pesam muito mais no imaginário coletivo do que a reconstrução do passado –, então podemos compreender alguns dos fenômenos decorrentes desse “experenciar o futuro no presente”. Entre eles, destacam-se as várias manifestação das chamadas fobias ambientais e do presenteísmo hodierno – essa espécie de “sede de viver o momento presente”.
A angústia existencial do homem contemporâneo, marcado pelas contradições da pós-modernidade, reside, em parte, nesse paradoxo entre a preocupação exacerbada com o futuro e a adoção de práticas cada vez mais centradas no presente.
Nosso homem pós-moderno – aquele que delineamos simbolicamente – sintoniza o filho mais com o futuro do que com o passado: busca proporcionar-lhe o que considera “a melhor educação”, não lhe impõe a continuidade do “negócio da família”, do qual ele mesmo se desfaz com uma facilidade desconhecida das gerações que o antecederam.
Concordamos com Zygmunt Bauman quando afirma que o mundo contemporâneo é fluido e dinâmico6. Acrescentamos que esse mundo já havia deixado para trás até mesmo o que outrora se denominou pós-modernidade. Hoje vivemos um mundo globalizado e pós-industrializado, onde convivem opostos: um mundo marcado pelo sincretismo religioso, pela multiculturalidade, pela pluralidade de valores e pela queda dos absolutismos de outras épocas. São poucos os que ainda defendem uma verdade absoluta. As sociedades contemporâneas são caracterizadas pelo apego aos supérfluos, pelo consumismo, pelos modismos e pelo culto ao corpo7.
No entanto, enquanto viver intensamente o momento presente parece ser a palavra de ordem, a preocupação com questões éticas, com os problemas ambientais e com o futuro da humanidade ressurge e passa a fazer parte das inquietações cotidianas, em um paradoxo que expressa a condição do homem contemporâneo. É dessa necessidade de projetar-se para o futuro que emerge uma das expressões mais significativas dessa preocupação: a Bioética. Ou seja, é nessa tensão entre o efêmero e o durador, entre memórias do passado e projeções de futuro, que atualmente se acentuam as preocupações éticas em torno do destino da humanidade.
Ao questionar o modernismo progressista – responsável por inúmeros dilemas éticos e ambientais, sobretudo os decorrentes do desenvolvimento tecnológico e científico – o ser contemporâneo, em busca de um novo paradigma, retoma o antigo, o arcaico, aquilo que havia sido relegado ao esquecimento ou ao descrédito pela razão moderna. A “percepção linear do tempo”, própria das sociedades modernas progressistas do Ocidente (aqui representadas pelos países avançados da Europa e do mundo anglo-saxão), dá lugar a uma “percepção cíclica do tempo”, que sempre prevaleceu nas sociedades orientais (representadas por China, Japão e Índia). Eis que surge o homem contemporâneo: rejeita seletivamente a modernidade, após ter superado a fase de transição marcada pelo esforço pós-modernista de desconstrução de conceitos e valores até então considerados sólidos. Transpôs o pós-moderno. Esse homem, ainda marcado pela modernidade, reconcilia-se com ela, adotando apenas aquilo que lhe convém e rejeitando o que não mais lhe serve. Reconstrói, com maior serenidade, valores que haviam sido desconstruídos na pós-modernidade. Em outras palavras: rejeita tanto “o instrumentalismo racional do moderno” quanto “a radical desconstrução do pós-moderno”, absorvendo de forma seletiva elementos de ambas as fases. Introjeta a complexidade que antes lhe era externa e redimensiona seu lugar e papel no mundo.
É nesse processo que três conceitos ganham especial relevo no pensamento contemporâneo: o conceito de instituição[8], em seu sentido amplo; o conceito de responsabilidade; e o de autonomia, agora compreendida como inseparável da responsabilidade e desvinculada do individualismo liberal – esse, devidamente criticado pelo movimento feminista da década de 1970. É na tensão entre esses três conceitos-chave que o homem contemporâneo se empenha na reconstrução de valores fundamentais à humanidade e que, por um determinado tempo, pareceram abandonados9.
Importa observar que o eco desse abandono, embora presente em todas as sociedades globais, manifesta-se de forma mais aguda nas sociedades emergentes. Nestes contextos, o projeto de modernidade, já superado nas sociedades avançadas, ressurge como um modernismo caótico, aprofundando a distância entre mundos paralelos – mundos que, embora compartilhem um mesmo território, não estão sincronizados no tempo. Esa defasagem se expressa em ações conflitantes, frequentemente alimentadas pelo próprio Estado, reforçando desigualdades e distorções nos modos de vida. Para ilustrar, tome-se o Brasil como exemplo emblemático de país emergente. Nele, coexistem a coação estatal que obriga a criança a frequentar a escola e a imposição de diretrizes curriculares que “pregam um humanismo de cartilha”, enquanto essas mesmas crianças, obedientes a tais normas, tornam-se vítimas de balas perdidas dentro da própria sala de aula.
A lista de exemplos seria extensa – e desnecessária. Ela vai desde a verticalização desordenada e desumana das cidades emergentes (muitas vezes confundida com desenvolvimento) até a piora, em vez da esperada melhora, na prestação de serviços por conta da informatização. Ou seja, as sociedades emergentes, ainda fascinadas pela modernidade industrial das antigas potências, empenham-se tardiamente em sua industrialização como meio de acelerar o crescimento. Contudo, não alcançam os benefícios prometidos pela modernidade em seu auge e acabam se contentando com suas sobras – com uma modernidade às avessas, um modernismo. Um modernismo que, sob uma ótica sistêmica, pode até parecer doentio – embora continue a ser tratado, nessas sociedades, de maneira fragmentada, inclusive nas políticas públicas. Usando a terminologia de Bauman, dir-se-ia que os países emergentes ainda estão presos à “versão pesada da modernidade”10. O urbanismo das sociedades avançadas é gélido e inibe a interação humana; já o urbanismo das cidades emergentes transforma essa interação em atos que, sob a ótica do passado, seriam incompreensíveis – e, sob a ótica do futuro, inaceitáveis.
Retomando o pensamento contemporâneo, sem as especificidades regionais, não é por acaso que passamos a valorizar as antiguidades, a natureza, as sociedades primitivas, os tratamentos naturais e alternativos, a sabedoria oriental e sua medicina. Políticos consultam astrólogos com a mesma naturalidade com que solicitam pareceres técnicos. A racional teoria das decisões convive lado a lado com a valorização do pensamento intuitivo nas previsões de mercado. Pacientes alternam visitas a médicos, centros espíritas e cartomantes. A clientela exclusiva de psicanalistas passa, pouco a pouco, a buscar aconselhamento filosófico. As crises existenciais sobrepõem-se à própria crise da humanidade.
É nesse contexto que surgem – para alguns, ressurgem – diversos movimentos sociais que evidenciam a preocupação com o futuro da humanidade, com os problemas ambientais e com os dilemas éticos das últimas décadas. E é também nesse contexto que surgiu a Bioética.
2. Horizontes da Bioética: reflexões para um mundo em transformação
É nesse contexto que emerge a Bioética: como área do conhecimento, sim, mas sobretudo como resposta histórica a um tempo em que o poder da intervenção humana sobre a vida e a morte alcança níveis sem precedente. A Bioética pode ser compreendida como uma área do conhecimento que emerge das contradições próprias do homem contemporâneo. Este, por sua vez, habita um mundo caracterizado pela convivência simultânea de opostos – o moderno e o arcaico, o tradicional e o inovador – expressos na arte, na linguagem, na religiosidade, na cultura, na moda, na vida cotidiana – e até mesmo na consulta médica.
Em seu sentido mais amplo, a Bioética pode ser definida como sendo uma área do conhecimento que se ocupa do que é cientificamente reconhecido, juridicamente permitido e moralmente admitido no trato com toda e qualquer interferência humana nos processos de vida e morte11. Compreendida dessa forma, a Bioética ultrapassa a mera busca por normas que orientem médicos – ou profissionais de saúde em geral – sobre como lidar com temas como eutanásia, suicídio assistido, aborto, clonagem, organismos transgênicos e biotecnologia. A lista de tópicos seria infindável. Hoje fala-se também em ética biomédica, ética nas ciências, ética política, ética nos negócios, ética animal, ética ambiental, entre outras. Ou seja, sob essa perspectiva ampliada, os questionamentos da Bioética abrangem dimensões técnicas, axiológicas, sociológicas, jurídicas e políticas12.
Essa complexidade é, por assim dizer, a alma da Bioética – sem ela, não se justificaria concebê-la como campo autônomo ou dotado de fronteiras epistemológicas próprias. Ao mesmo tempo, é preciso cautela: justamente por possuir fronteiras dinâmicas e interativas, corre-se o risco de reduzi-la a um discurso descomprometido e sedutor, que, ao não saber lidar com sua complexidade, dissolve-se em um mero bate-papo interessante, numa bandeira moralista, em exigências legalistas, ou mesmo em instrumento retórico de lobbies políticos interessados apenas na mobilização da opinião pública em tono de temas sensíveis.
Essa natureza multifacetada permite considerar a Bioética não apenas como disciplina ou subárea da Filosofia e das Ciências da Saúde, mas como “um verdadeiro movimento cultural”, capaz de expressar a visão de mundo do ser contemporâneo. Tal característica está em consonância com a noção de modernidade líquida, proposta por Sygmunt Bauman13, ao admitir o caráter fluido, transformador e instável das sociedades contemporâneas complexamente organizadas.
Se, por um lado, essa amplitude conceitual confere à Bioética a plasticidade necessária para enfrentar os dilemas do presente, por outro lado, ela tem gerado expectativas desproporcionais. Por vezes, desponta no imaginário coletivo como uma espécie de “tábua de salvação da humanidade” – funcionando, no plano político, como dispositivo para indevida transferência de responsabilidades institucionais, ao confundir-se, por exemplo, com a própria política. Daí a expectativa recorrente de que a Bioética seja capaz de oferecer respostas definitivas a perguntas do tipo: devemos ser a favor ou contra a eutanásia? o aborto? os transgênicos? as novas tecnologias? – como se fosse possível analisar racionalmente cada elemento e, a partir de uma lógica linear, chegar a conclusões que garantam um futuro melhor para a humanidade – ou, no mínimo, para a construção de condições sustentáveis de sobrevivência humana no planeta (ou em outro, onde a vida possa prosperar). Os mais otimistas chegam a acreditar que o próprio avanço tecnológico resolverá os grandes dilemas – especialmente os problemas ecológicos – que ameaçam esse futuro incerto.
Diante disso, percebe-se que, desde sua origem, a Bioética se desdobra em diversas correntes, refletindo novamente as contradições e a coexistência de múltiplas visões de mundo nas sociedades contemporâneas. Nenhuma delas é falsa ou verdadeira em si, mas distintas – e todas partilham o desejo de um novo paradigma que oriente as ações humanas, mesmo reconhecendo que não existe uma verdade absoluta. Como desde os primórdios da humanidade, seguimos buscando um critério de moralidade para nossas ações – no plano pessoal, profissional, social e político. Essa busca, no entanto, não significa uma adesão irrestrita ao relativismo moral, mas sim a necessidade – imposta por essa “nova sociedade fluida e perene” – de reinserir nos diversos campos da vida humana aquilo que aqui chamamos de “a medida da moralidade”, respeitando a complexidade do tecido social e a interatividade que marca os dilemas éticos atuais.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que não é o fenômeno em si que é novo, mas as formas de sua manifestação, que hoje nos surpreendem. No mundo globalizado, há uma necessidade aguda de revisar os conceitos éticos e morais vigentes – como já ocorrera na Atena da antiguidade. Também ali, em tempos de apogeu e decadência, a convivência entre povos, religiões e culturas distintas impôs a necessidade de repensar valores. A diferença é que, hoje, o espaço físico limitado da antiga Atenas, corresponde a um planeta inteiro, no qual múltiplas culturas e destinos estão interligados. E nem sempre esse deslocamento precisa ser físico: a tecnologia permite vivenciar à distância – e até agir à distância – como demonstram os avanços da telemedicina. Um cirurgião opera em um país, enquanto o laboratório que analisa exames está em outro, e o paciente, em um terceiro. A técnica expandiu as fronteiras da proximidade espacial. Médico, paciente e instrumentos diagnósticos não precisam mais estar juntos no mesmo espaço – nem no mesmo tempo.
Essa ampliação da experiência técnica atinge também a relação entre tempo e espaço: é possível, por exemplo, esclarecer causas de morte ocorridas no passado distante, ou fazer diagnósticos relativos a fenômenos tão antigos que precedem a própria existência do planeta Terra – como demonstram alguns experimentos da cosmologia. Já não é apenas ao contemplar as estrelas que somos confrontados com o paradoxo espaço-tempo, mas também ao intervir no mundo com tecnologias cada vez mais avançadas. O desacoplamento entre tempo e espaço está presente em todos os grandes dilemas do presente, principalmente aqueles que envolvem projeções de futuro em relação a fenômenos que, até recentemente, inalcançáveis – como a manipulação genética e os desdobramentos do Projeto Genoma.
No mundo atual, não há mais limites geográficos ou fronteiras culturais que consigam restringir a experiência humana. A globalização, aliada às tecnologias de comunicação, instaurou um espaço virtual que supera a lógica territorial. O que foi Atenas para a Antiguidade, é hoje o planeta inteiro para o homem contemporâneo: um espaço de intensa convivência entre diferentes povos, culturas, religiões, valores morais e concepções de tempo – linear ou cíclica.
Essa convivência de contrários aguça a necessidade de revisar os conceitos morais e éticos vigentes, assim como ocorreu na Atenas clássica. Desde os desafios impostos pela intervenção humana nos processos de vida e morte até os dilemas da prática biomédica, delineia-se o campo de atuação da Bioética – um campo carregado de tensões éticas, que transcende a dimensão técnica e escapa às categorias da ética filosófica clássica. É nesse território que o pensamento contemporâneo em sua plasticidade amorfa, transita por valores fundantes em busca de respostas às exigências de sociedades marcadas por transformações constantes e contradições profundas. No âmago dessas contradições, emerge uma dimensão fundamental como chave interpretativa da ética contemporânea: a percepção do tempo.
Ao projetar o pensamento para o futuro, observam-se, nas sociedades contemporâneas, duas grandes percepções de tempo: a linear e a cíclica. A primeira, própria do Ocidente, concebe o tempo como uma sucessão de etapas – começo, meio e fim –, e atribui ao ser humano a responsabilidade de evitar, por meio da tecnologia, a destruição do planeta. A segunda, mais presente no pensamento oriental, vê o tempo como fluxo contínuo e transformação constante, em que presente, passado e futuro se entrelaçam. Segundo essa perspectiva, nossas ações individuais têm impacto limitado no curso geral dos acontecimentos.
Saturado por dilemas e projeções pessimistas, o homem ocidental contemporâneo passa a questionar a própria noção de tempo e, mais profundamente, o alcance da moralidade humana. A Bioética, então, não se limita a fornecer respostas para dilemas específicos, mas revela a necessidade de conciliar razão, emoção e afetos diante da complexidade do mundo. Essa conciliação ocorre principalmente por meio das instituições sociais, que funcionam como mecanismos estabilizadores e reguladores das tensões da vida contemporânea.
A “instituição”, enquanto fenômeno social, adquire novo significado nesse cenário. Em um mundo órfão das autoridades tradicionais – religiosas ou políticas –, ela passa a ocupar o lugar de referência normativa. O Estado Democrático de Direito torna-se, assim, o arcabouço legítimo para a regulamentação dos comportamentos e das ações socialmente relevantes. É nesse enquadramento que a Bioética se consolida como instituição compatível com os valores da autonomia, da dignidade humana e da cultura ocidental – em especial sua matriz judaico-cristã e liberal democrática.
O homem contemporâneo é, nesse sentido, um nômade cultural: transita entre culturas, temporalidades, espaços e identidades. Vive em constante oscilação entre o passado e o futuro, entre o aqui e o acolá, entre o si mesmo e o outro. As instituições – sejam o Estado, o sistema jurídico ou as decisões políticas – constituem seu porto seguro. Temas como eutanásia, aborto, biotecnologia, direito à saúde ou à habitação são todos mediados por instituições coletivas. A Bioética, portanto, é mais uma dessas instituições emergentes, fruto dos questionamentos contemporâneos, que compõem o repertório normativo voltado à coesão e à estabilidade da vida social.
A Bioética é um fragmento do pensamento contemporâneo e, como tal, carrega as marcas de sua origem. Se a descoberta da expansão do universo ampliou os horizontes do conhecimento, a expansão da mente permitiu lançar um novo olhar sobre teorias antes tidas como absolutas – a ética normativa, as verdades científicas, o materialismo histórico de Marx, as interpretações freudianas da subjetividade. Nenhuma dessas teorias perde relevância; todas são redimensionadas à luz da contemporaneidade. Nem relativismo absoluto, nem absolutismo moral: busca-se a justa medida da moralidade, em conformidade com a complexidade do mundo atual.
Essa medida não reside mais na autoridade da teoria em si, mas na consciência de seus limites e da necessidade de articulação com o tecido social. Trata-se de aceitar a humanidade como ela é – com seus excessos e carências, com suas intervenções e omissões –, e atribuir-lhe responsabilidade por suas escolhas e consequências.
Mesmo após superar mitos, dogmas, o racionalismo iluminista e a desconstrução pós-moderna, o homem contemporâneo preserva os vínculos com todas as fases que garantiram sua sobrevivência. No entanto, incorre em um novo equívoco: o de acreditar que pode acessar diretamente a si mesmo e prescindir do outro na busca por felicidade e satisfação.
O equívoco moderno está em tentar institucionalizar a felicidade. Os direitos individuais – como o direito à saúde ou a uma vida digna – só ganham sentido se orientados para o coletivo. O erro está em confundir o coletivo com a soma das individualidades. Nenhuma instituição pode garantir saúde ou felicidade, apenas assegurar o acesso a bens e serviços necessários à vida digna. Ao tentar universalizar um bem para todos, corre-se o risco de esgotar os próprios recursos.
Portanto, o acesso ao “concreto” se dá por meio da coletividade e da institucionalidade. Felicidade e satisfação são dimensões subjetivas., não passíveis de serem asseguradas por dispositivos legais ou constitucionais. É justamente por isso – e não apesar disso – que os índices de suicídio são mais altos em países com melhores indicadores sociais: o bem-estar subjetivo não se alcança institucionalmente. A felicidade não é garantida pelo acesso a bens, mas pela complexa e singular experiência humana.
3. Considerações finais
Diante do cenário de institucionalização crescente da vida cotidiana e da proliferação de direitos ancorados em desejos subjetivos, assiste-se a uma expansão das demandas sociais por reconhecimento jurídico. Tais pleitos formulados sob a lógica do desejo individual, tensionam as bases tradicionais da normatividade ética e jurídica, desafiando os limites entre o legítimo e o admissível. Nesse contexto, a Bioética é convocada a refletir não apenas sobre o que é tecnicamente possível ou juridicamente reivindicável, mas sobretudo sobre o que é eticamente sustentável em uma sociedade marcada por paradoxos morais e transformações aceleradas.
A globalização e as tecnologias da comunicação colocaram o ser humano em um espaço virtual que desafia antigas noções de tempo, identidade e pertencimento. O planeta tornou-se o novo palco da convivência de opostos: o moderno e o arcaico, o técnico e o simbólico, o racional e o afetivo.
Essa simultaneidade de contrários manifesta-se nas múltiplas expressões culturais: nas artes, na música, na linguagem, nos sincretismos religiosos e nas práticas sociais. Tudo convive – e colide – no mesmo espaço-tempo, exigindo novas formas de mediação e entendimento. A complexidade crescente do mundo contemporâneo impõe uma revisão profunda de conceitos morais, éticos e jurídicos.
A percepção do tempo é um elemento essencial nessa reconfiguração. As sociedades atuais parecem oscilar entre duas visões temporais: uma linear e uma cíclica. Na percepção linear, mais característica do pensamento ocidental, o futuro depende das escolhas presentes e o ser humano sente-se na responsabilidade de salvar ou destruir o planeta. Na percepção cíclica, mais característica no pensamento oriental, todas as temporalidades – passado, presente e futuro – coexistem no agora, em um eterno retorno que apazigua o ser com o universo, amenizando-lhe o sentimento de responsabilidade individual pelo destino da humanidade ou do planeta. A ética do futuro terá que saber equilibrar a memória – enquanto vínculo com o passado e com a “história da humanidade” –, a autonomia – como expressão da liberdade individual – e a responsabilidade, como compromisso intransferível com o outro e com o coletivo.
Nesse contexto, palavras de ordem do dia como Bioética, globalização, nova ordem mundial, Estado Democrático de Direito, neoconstitucionalismo, direitos fundamentais, garantia de direitos individuais, princípio da autonomia e princípio da responsabilidade se entrelaçam em uma trama conceitual que traduz o ethos de nosso tempo. Já não é possível tratá-los isoladamente. Eles fazem parte de um mesmo corpo de valores, de uma mesma linguagem das sociedades complexamente organizadas das democracias ocidentais contemporâneas.
A Bioética, enquanto linguagem do futuro, convoca à memória, à autonomia e à responsabilidade. Exige consciência histórica, liberdade crítica e comprometimento com o bem comum. Ela não aponta respostas definitivas, mas abre espaço para perguntas melhores. E é justamente essa sua força: reconciliar razão e sensibilidade, técnica e humanidade, ciência e ética, dentro de um mundo que precisa – mais do que nunca – pensar além de si mesmo.
Bibliografia
BAUMAN, Sygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics. 4th. Ed., New York: Oxford University Press, 1994.
COMPARATO, Fabio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Iraniana ‘adúltera' escapa de morte por apedrejamento. BBC News Brasil, 9 jul. 2010. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/07/100709_apedrejamento_ira_ir. Acesso em 28/05/2025.
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.
KUTSCHERA, Franz von. Grundlagen der Ethik. Berlin; New York: de Gruyter, 1982.
MAFFESOLI, Michel. O Instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Trad. Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003
MURR, Leidimar P . O que é a Bioética? A ética médica da contemporaneidade. München: GRIN Verlag, 2025.
MURR, Leidimar P. A quinta dimensão do Direito. München: GRIN Verlag, 2019.
MURR, Leidimar P. O ato médico e sua normatividade. München: GRIN Verlag, 2010.
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1 Leidimar Pereira Murr é Doutora em Bioética pela Eberhard Karls Universität Tübingen, Alemanha, onde integrou o Colégio de Doutorandos do Internationales Zentrum für Ethik in den Wisseschaften (IZEW). Médica, advogada, professora e escritora, com atuação interdisciplinar nas áreas da saúde, ética e Direito, tendo sido responsável por uma das primeiras experiências sistemáticas de ensino da Bioética na Universidade Federal do Rio grande do Norte. Desde 2018, Conselheira Suplente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte. Desenvolve reflexões críticas sobre os desafios morais e institucionais do mundo contemporâneo, com especial ênfase na Bioética como campo de pensamento e ação.
2 Cf. KUTSCHERA (1982). Sob o título de fundamentos da ética, analisa a inconsistência em exigências morais ou da relação entre interesse e moral.
3 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS (1994, p. 75-92). Mesmo se tratando de tema muito amplo, os autores descrevem de forma muito sintética e precisa as principais controvérsias em torno das teorias da ética. Atente que o termo individualismo liberal ainda é comumente utilizado para expressar juízo de valor negativo sobre a primazia de direitos individuais constitucionalmente garantidos.
4 Ver Iraniana ‘adúltera' escapa de morte por apedrejamento. BBC News Brasil, 9 jul. 2010. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/07/100709_apedrejamento_ira_ir. Acesso em 28/05/2025.
5 A descrição dos fatores de mudança na mentalidade do mundo antigo, medieval e moderno pode ser encontrado em COMPARATO (2006).
6 BAUMAN (2001).
7 Há autores como Maffesoli, por exemplo, que entendem esse paradoxo como resultante da desconstrução pós-moderna que se seguiu ao extremo racionalismo da era moderna, conferindo uma sensibilidade trágica que imobiliza o tempo e favorece a opção por uma vida intensa e aberta a um vitalismo selvagem. Cf. MAFFESOLI (2003).
8 O termo instituição é aqui entendido em seu sentido amplo de instituição social. Ou seja, como um conjunto de regras que formam o arcabouço que define uma entidade para atender a uma determinada demanda social; precisam estar em harmonia ou compatibilidade com outros sistemas normativos e ordem social. Parece ser importante fator de coesão das sociedades contemporâneas – talvez o mais significativo.
9 Veja a tentativa de elaborar uma ética para a civilização dominada pela tecnologia, por Hans Jonas em O princípio da responsabilidade. JONAS (1984).
10 Op. cit. BAUMAN (2001, p. 134).
11 Ver MURR (2025).
12 Ver MURR (2010). A partir da análise da natureza do ato médico, a autora define a Bioética e apresenta o Direito em uma estrutura pentadimensional, ampliada em MURR (2019).
13 Op. cit. BAUMAN (2001).
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- Leidimar Murr (Author), 2025, Bioética - uma reflexão para o futuro, Munich, GRIN Verlag, https://www.grin.com/document/1591629